14 mar 2025, sex

Balé da Cidade dança missa para mortos e música eletrônica – 14/03/2025 – Ilustrada

A certa altura do novo espetáculo do Balé da Cidade de São Paulo, uma bailarina dança tão rápido, tão rápido que o atletismo a leva à exaustão. Ela começa a chorar no palco —pelo menos é esta a impressão que temos da plateia— enquanto uma câmera filma seu rosto entre o êxtase e a dor e transmite as imagens em tempo real para um telão ao fundo.

Esta cena ilustra o equilíbrio entre a tristeza, por um lado, e a pulsão de vida, por outro, que perpassa os cerca de 70 minutos de “Réquiem SP”, o primeiro balé com Alejandro Ahmed como diretor artístico do corpo de baile da cidade. O coreógrafo já havia montado há três anos o espetáculo “Sixty Eight em Axys Atlas” para o Balé da Cidade, mas como convidado, sem ainda estar no comando.

O que Ahmed leva ao palco do Theatro Municipal de São Paulo a partir desta sexta (14), junto ao Coral Paulistano e à Orquestra Sinfônica Municipal, que fazem os vocais e a instrumentação ao vivo, é a costura de dois universos distintos.

Na primeira parte do espetáculo, mais dentro do que se imagina que seja um balé, os músicos e os cantores executam o “Réquiem” de György Ligeti, enquanto os bailarinos dançam esta missa para os mortos, uma das mais conhecidas do compositor húngaro.

Na segunda metade, o cenário e o figurino, até então totalmente pretos, mudam de cor para branco. A orquestra e o coro saem de cena, e em seu lugar ouvimos das caixas de som a música eletrônica veloz e de batidas quebradas do canadense Venetian Snares.

Há um toca-discos de DJ no palco. Numa longa cena solo, a bailarina Bill Valkyrie dança com precisão milimétrica, encaixando seus movimentos de forma exata ao ritmo frenético da música.

“Há algum tempo eu não coreografava música de uma forma tão artesanal”, diz Ahmed, numa conversa no teatro depois de um ensaio. “Artesanal significa que você vai colocar exatamente aquela célula de música como está na partitura e vai entrar com um movimento desenhado para aquilo.”

A sincronicidade se estende para outros elementos. No telão, vemos a transcrição fonética das sílabas entoadas pelo coro no momento em que são cantadas. Nas laterais do palco, dois frascos tipo conta-gotas gigantes pingam água de tempos em tempos, e as gotas produzem sons incorporados à dança. Isso é tudo feito na hora, ao vivo, afirma Ahmed, acrescentando que é possível controlar até o tamanho da gota.

Quem já viu outros espetáculos do coreógrafo, um uruguaio que vive no Brasil desde criança, vai reconhecer em “Réquiem SP” elementos de seu vocabulário cênico, desenvolvido enquanto ele comandava o grupo de dança Cena 11, em Florianópolis. Estão no palco as câmeras transmitindo a coreografia para o telão —operadas por bailarinos—, e televisões com cronômetros marcando a passagem do tempo. A tecnologia é uma aliada.

“Para mim interessa não fugir da máquina, mas entender que ela também é uma extensão da natureza. Então, dentro disso, a gente precisa se entender, porque ela vai seguir. Ou por nós ou por ela mesma, daqui a pouco”, afirma o coreógrafo.

É possível identificar elementos de danças de rua no balé, e a ideia era essa mesmo. Ahmed afirma que não se pode fazer do Theatro Municipal uma redoma, e que criar um diálogo do espaço com a rua e as pichações ao redor faz sentido, desde que isso não venha à custa da técnica dos bailarinos —que está muito afiada. A coreografia incorpora também as quedas, outra de suas marcas no Cena 11.

Com este sem fim de referências, que abarcam no mesmo espetáculo a música erudita pós-Segunda Guerra de Ligeti e a eletrônica dos jovens urbanos do século 21, o coreógrafo não subestima a inteligência da plateia. “Um equipamento público com essa potência e com essa responsabilidade, ele deve justamente entregar conhecimento de ponta e discussões de ponta”, diz.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *