15 mar 2025, sáb

Delivery desafia o leitor e tira livro infantil da mesmice – 15/03/2025 – Era Outra Vez

O poeta baiano Antônio Brasileiro já disse —”a verdade é uma só: são muitas”. Quando falamos de livros, uma dessas verdades é que poucas coisas costumam ser mais experimentais, ousadas e inovadoras do que a literatura infantojuvenil de qualidade e as boas obras ilustradas.

Nelas, não é raro encontrar ecos de Calvino, Joyce e Cortázar, o dissenso dos poetas concretos, o risco do design de vanguarda e acenos para as artes visuais e o livro de artista, gerando muitas vezes uma pergunta para lá de interessante: o que é um livro?

Afinal, nos bons lançamentos para esse público, um livro não é só um amontoado de folhas que devem ser lidas da esquerda para a direita e de cima para baixo. A literatura infantojuvenil brinca. E, durante esse jogo, vira o objeto de ponta-cabeça, testa outros formatos, fricciona palavras e imagens até elas falarem de coisas diferentes ao mesmo tempo, quebra os padrões da narrativa e da linguagem. O que ainda é visto como revolucionário na tal “literatura para adultos” não assusta quase ninguém na produção para as infâncias —muito menos as crianças, geralmente mais abertas a esses experimentos.

É claro que nem tudo é assim. Aliás, é a minoria. Muita patacoada é publicada, livrarias estão abarrotadas de bobagens infantiloides, prateleiras mal se aguentam de tantas cartilhas pedagógicas travestidas de literatura. Mas aí vem o verso seguinte de Brasileiro: “A verdade é uma só: são muitas./ E estamos todos certos. E sem rumo”. Pois os bons livros servem de bússola quando nos sentimos perdidos nesse terreno.

Uma dessas bússolas acaba de ser lançada: “Delivery”, escrito por Tino Freitas e com ilustrações de Gustavo Nascimento, Natália Gregorini e Odilon Moraes.

Só pela escalação de autores já é possível perceber que existe algo diferente aí. A obra, que será lançada neste fim de semana em São Paulo e Jundiaí, no interior paulista, é ilustrada simultaneamente pelos três artistas, que criam narrativas visuais independentes e paralelas, mas interligadas à medida que avançamos na leitura.

No texto, Freitas nos apresenta um narrador que fala sobre o pai. “Toda manhã ele sai para trabalhar. Ele diz que é dono do próprio negócio”, afirma essa voz. Mas quem é ele? O esperado seria encontrar a resposta nas imagens. É aí que as coisas começam a ficar interessantes.

Gustavo Nascimento faz um pai de camisa e paletó, aparentemente bambambã numa empresa de logística. Natália Gregorini, por outro lado, nos mostra um pai entregador de delivery, um desses tantos trabalhadores que pedalam pela cidade levando encomendas e comidas. Já Odilon Moraes vai pelo caminho mais surpreendente e cria um pai barqueiro, solitário e silencioso. Todos ilustram o mesmo texto e se conectam a partir da paternidade, de suas bicicletas e das ideias de entrega, movimento e espera.

Mas, afinal, qual é a história do livro? O que “Delivery” nos entrega? São três narrativas isoladas, sobre três pais diferentes? Talvez quatro, já que também há a dimensão da palavra escrita? Estamos diante de uma história única que ocorre em três lugares e com três protagonistas? Quem sabe seja um metaverso, como está na moda no cinema e nas séries?

Não há respostas definitivas —o que é ótimo, aliás, porque a arte se alimenta de dúvidas e não de vereditos. Mas temos algumas pistas, sobretudo mais para o final do livro, quando esses homens começam a se conectar. Não vou estragar a surpresa, mas, nos casos de Moraes e Nascimento, há uma bela subversão das figuras do pai e do filho narrador.

Aí voltamos à questão do início deste texto. O que é um livro? “Delivery” não é um objeto para ser lido de forma linear, como costumamos fazer, da primeira à última página e ponto final. Como as tramas visuais são ao mesmo tempo independentes e inseparáveis, formando uma intersecção de narrativas, elas pedem outro tipo de relação, outro olhar, outra dinâmica de leitura. Para realmente ler a obra, é necessário sempre voltar atrás e recomeçar o livro pelo menos duas ou três vezes. Assim como os personagens se deslocam, o leitor também precisa fazer esse vaivém.

Afinal, “a verdade é uma só: são muitas”, já disse Brasileiro.


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