A cena se passou numa esquina da rua Cayowaá, na zona oeste de São Paulo, há pouco mais de dez anos. Sentado em uma mesa de bar, na calçada, um homem que certamente havia ultrapassado os 70 anos. Estava sozinho, diante de um copo de cerveja. À frente dos olhos, lacrimejantes, uma certidão de óbito em nome de uma mulher. Talvez cantasse Nelson Gonçalves, porque naquela mesa estava faltando ela.
O bar não existe mais, foi derrubado para dar lugar a um empreendimento. O idoso também deve ter tombado. Depois de perder o amor de sua vida, ele teve que enfrentar as questões burocráticas que acompanham o encerramento de contas bancárias, um inventário ou uma declaração final de espólio. A dor da viuvez não pode ser comparada com coisa alguma, mas só quem já passou pelos trâmites da vida moderna sabe o sofrimento que é conseguir resolver pendências como essas. Ainda mais depois de certos anos de vida.
Não são poucos os funcionários públicos, cartoriais e advogados despreparados para lidar com a lentidão, a confusão mental e a dificuldade de compreensão de quem adentrou a terceira idade. Isso sem falar dos aproveitadores que aparecem para roubar economias, aposentadorias e bens. Se a sobrevivência a esse tipo de mau-caráter já é complicada para quem ainda está na faixa dos 40 ou 50 nos, o que dirá daqueles que a essas décadas somam outras.
Por isso é importante a iniciativa do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em inaugurar a 1ª Vara Especializada em Pessoas Idosas. O projeto nasceu após estudos sobre o crescimento dessa população e a importância de um departamento específico para atendimento de vítimas de maus-tratos, negligência familiar e até golpes financeiros.
É fundamental que a iniciativa dê frutos na Justiça —e em outros setores da sociedade. Entre 2000 e 2023, a proporção de brasileiros com 60 anos ou mais quase duplicou, chegando a 15,6%.
Segundo o IBGE, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais são os estados com o maior percentual de idosos, com respectivamente 14,1%, 13,1% e 12,4%.
Assim, caminhamos rapidamente para o envelhecimento e, acredite, ainda sobram preconceito e impaciência. O idoso —que é cidadão, consumidor e sustento de milhares de lares— parece que é invisível.
Os ônibus param longe das calçadas, dificultando o acesso de quem tem mobilidade reduzida. Os semáforos não ficam abertos no tempo suficiente para quem usa uma bengala atravessar a rua. Os aplicativos de banco —e de outros serviços— funcionam com uma lógica que não contempla o raciocínio de quem não está acostumado com as sutilezas do mundo digital.
Isso sem falar no tamanho dos rótulos das embalagens e no tratamento oferecido pelos funcionários dos planos de saúde. E a falta de assentos e bancos pelas ruas, já reparou? Isso num país onde o próprio presidente da República tem 79 anos.
Pensando nos cabelos brancos, é moderno falar em uma “economia prateada”, voltada às pessoas acima dos 60 anos. Mil vivas, sim, à Justiça prateada, que é capaz de designar um atendimento adequado para idosos. Mas é preciso pensar também na mobilidade prateada, na urbanidade prateada, no varejo prateado, na saúde prateada. Porque parece que a sociedade só está atrás, mesmo, é de outra prata —aquela que a terceira idade carrega no bolso, nas contas bancárias, nas aposentadorias.
A Assembleia Geral das Nações Unidas declarou o período entre 2021 e 2030 como a Década do Envelhecimento Saudável, com foco na construção de uma sociedade que acolha e valorize todas as faixas etárias. São quatro áreas de atuação. A primeira é a mudança na forma como pensamos, sentimos e agimos com relação ao envelhecimento. Talvez seja o ponto mais difícil, antes mesmo da promoção de ações, dos serviços integrados e do cuidado a longo prazo.
Se não houver mudança de atitude para cuidar da velhice, ela muda de prateada para cinzenta. Sem vida.
TENDÊNCIAS / DEBATES
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