19 mar 2025, qua

Atletas vacinados não morrem de repente – 18/03/2025 – Bruno Gualano

“Died Suddenly” (“Morreu de repente”) é um dito documentário lançado em 2022 que alega que as vacinas contra a Covid-19 estão causando mortes súbitas em larga escala.

A peça ficcional —hospedada nas “libertárias” Rumble e X— sugere que há uma conspiração global para despovoar a Terra (decerto plana) por meio da vacinação, utilizando imagens fora de contexto, depoimentos enganosos e desinformação de toda sorte para sustentar suas alegações.

Para incrementar o melodrama, o filme usa imagens de atletas colapsando durante jogos, sugerindo, falsamente, que essas ocorrências estão ligadas à vacina da Covid-19. Um dos casos explorados no filme é o do jogador de basquete universitário Keyontae Johnson, que desmaiou em quadra em dezembro de 2020.

À época, os imunizantes nem sequer estavam disponíveis e o atleta não morreu. Mas ao movimento antivacina não interessa a verdade. A busca pelo conhecimento empírico e confiável cumpre à ciência, que, em seu tempo, tende a colocar os conspiradores em seu devido lugar.

É o que faz, elegantemente, um estudo recente liderado pela dra. Camilla Astley (a qual tive o prazer de orientar em seu doutoramento), com a supervisão do prof. Jon Drezner (Washington University).

A fim de jogar luz nos rumores de aumento de paradas cardíacas e mortes súbitas em atletas jovens associado à infecção pelo vírus ou às vacinas de mRNA, os pesquisadores comparam a prevalência desses eventos nos três anos anteriores à pandemia (2017-2019) com os primeiros três anos da pandemia (2020-2022), utilizando dados do National Center for Catastrophic Sports Injury Research (NCCSIR), instituição que monitora lesões e doenças catastróficas em diversas modalidades esportivas, visando compreender sua incidência e promover medidas preventivas.

Foram analisados 387 casos de paradas cardíacas e mortes súbitas (idade média de 16,5 anos; 86,3% homens), coletados por meio de autópsias, registros médicos, relatórios de legistas e, quando necessário, informações da mídia.

Os resultados mostraram que não houve diferença significante no número total de desfechos entre os períodos (203 casos antes, contra 184 durante a pandemia). A miocardite foi confirmada como causa de morte súbita em apenas três casos pré-pandemia e quatro durante a pandemia. Portanto, os números são categóricos em apontar que a incidência de eventos cardíacos entre atletas jovens se manteve estável ao longo do tempo, a despeito da emergência da Covid-19 e da introdução das novas vacinas de mRNA.

Ao confrontar alegações infundadas com dados rigorosos e de longo prazo, estudos como esse oferecem um modelo eficaz para desarmar narrativas negacionistas que viralizam no esgoto das redes; esclarecer atletas, familiares e treinadores sobre a segurança das vacinas; expor métodos de manipulação usados por grupos antivacina, como a seleção tendenciosa de casos; e fortalecer políticas públicas baseadas em fatos, não em pânico.

Mas a praga do negacionismo não será extirpada. Primeiro porque demora muito mais para produzir ciência do que mentira, que corre solta no vácuo das evidências, como vimos na pandemia. Segundo porque a racionalidade científica não é páreo para as maliciosas táticas cognitivas e retóricas usadas para incutir caraminholas no heuristicamente enviesado cérebro humano. Finalmente, porque alguns que, por tradição da função, deveriam enfrentar a desinformação estão, paradoxalmente, ocupados em disseminá-la.

Exemplo cabal é o apedeuta escolhido por Trump para comandar a Secretaria de Saúde, Robert F. Kennedy Jr., um ativista antivacina segundo quem o coronavírus foi “etnicamente direcionado” para poupar judeus e chineses.

Aqui também provamos o azedume da barbárie, marcada pela escassez de vacinas, oxigênio, competência e pudor.

O necrossistema brasileiro é retratado no recém-lançado Acervo da Pandemia, um repositório digital de acesso gratuito sob curadoria da Unifesp, que expõe condutas e discursos —alguns autoincriminatórios— de agentes públicos e privados que, durante a pandemia, conspiraram contra a vida e a ciência em nome de interesses econômicos e políticos. Mais que um conjunto de registros, esse acervo é uma necessária empreitada para impedir que o vírus da desinformação nos corroa a memória e o senso de justiça e reparação.


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