Na sexta-feira (31), os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos removeram de seu site milhares de páginas que incluíam termos como “transgênero”, “LGBT” e “pessoa grávida”, para cumprir uma ordem executiva que proíbe qualquer material que promova “ideologia de gênero”.
Na última segunda-feira (3), algumas das páginas reapareceram, em parte em resposta à intensa cobertura da mídia, reação da comunidade científica e preocupação com a saúde pública, de acordo com um alto funcionário com conhecimento do assunto.
A remoção também afetou declarações de informações sobre vacinas, que devem ser fornecidas aos pacientes antes de serem imunizados; diretrizes para contracepção; e várias páginas sobre como raça e racismo afetam os resultados de saúde. Também foi removido um banco de dados contendo 20 anos de dados sobre HIV que os médicos usam para determinar se uma mulher grávida vive em uma área de alta prevalência de HIV e deve ser testada para o vírus no terceiro trimestre.
Alguns desses recursos também foram restaurados, mas o retorno não foi totalmente tranquilo. Gráficos e tabelas no banco de dados de HIV podiam ser acessados por meio de uma pesquisa no Google, por exemplo, mas o próprio portal do CDC continuava com problemas.
Os funcionários do CDC estão “implementando total e completamente a ordem executiva”, diz um alto funcionário que falou sob condição de anonimato por medo de retaliação. Mas “dados históricos, artigos e diretrizes clínicas continuam disponíveis”, acrescenta o funcionário. “É assim que isso está sendo aplicado.”
A mudança acompanhou outras duas diretrizes também destinadas a expurgar informações sobre certos tópicos. Cientistas do CDC foram instruídos na sexta-feira à noite a retirar qualquer publicação pendente, em qualquer revista científica, que mencionasse os termos proibidos, de acordo com um e-mail visto pelo The New York Times.
Separadamente, uma diretriz proibindo funcionários do CDC de realizarem reuniões científicas ou se comunicarem com outras organizações ou com o público foi estendida indefinidamente no sábado, quando se esperava que expirasse, de acordo com outro e-mail obtido pelo Times.
“Estou muito temerosa e muito zangada com o que está acontecendo agora”, diz Ina Park, especialista em HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis na Universidade da Califórnia, em São Francisco.
A diretriz também mirou páginas em outros sites governamentais, incluindo uma página sobre a Seção 1557 da Lei de Cuidados Acessíveis, sob a égide do Departamento de Saúde e Serviços Humanos. Essa provisão proíbe “discriminação com base em raça, cor, origem nacional, idade, deficiência ou sexo (incluindo gravidez, orientação sexual, identidade de gênero e características sexuais), em programas ou atividades de saúde cobertos.” Ela também estava de volta online na segunda-feira.
As recomendações do CDC são a base da prática clínica nos Estados Unidos. Os manuais de procedimentos de todos os hospitais estão cheios de documentos da agência, e os clínicos regularmente se referem às recomendações, no site ou através do aplicativo da agência.
Agora, no entanto, a busca por alguns termos leva a um link quebrado ou a páginas que foram despojadas de detalhes importantes, ou a busca sugere explorar outro tópico. Por exemplo, uma busca pela palavra “aborto” sugere que o usuário “também tente: adoção.”
Algumas páginas —por exemplo, aquelas sobre saúde transgênero —deveriam permanecer ausentes porque poderiam promover “ideologia de gênero.”
“Eu não faço ideia do que esse termo significa”, afirma Richard Besser, que atuou como diretor interino do CDC em 2009.
“Não estamos falando aqui de ideologia —estamos falando de saúde pública”, acrescenta. “Estamos falando de pessoas cujas vidas estão sendo colocadas em risco.”
O desaparecimento das páginas já está afetando o atendimento médico. No estado de Washington, Tim Menza, diretor médico da clínica de saúde sexual do Condado de King, estava preocupado que o progresso duramente conquistado contra a sífilis precoce em homens gays e bissexuais fosse perdido.
Jessica Weyer, obstetra-ginecologista em Concord, New Hampshire, afirma que não podia orientar a escolha de contracepção de suas pacientes sem acesso aos critérios complexos de elegibilidade. Por exemplo, as diretrizes para controle de natalidade incluem recomendações para pacientes com várias condições médicas. Elas também listam interações medicamentosas que devem ser levadas em conta e fornecem informações aos provedores sobre métodos mais novos, como anéis vaginais.
“Se uma paciente tem pressão alta ou enxaquecas, eu preciso saber o que é seguro para ela”, diz Alison Stuebe, obstetra-ginecologista na Carolina do Norte.
O site do CDC está ostensivamente sendo alterado para cumprir as ordens executivas do presidente Donald Trump sobre diversidade, equidade, inclusão, acessibilidade e “defesa das mulheres”. Mas declarações de informações sobre vacinas e diretrizes de contracepção não estão relacionadas a essas ordens, diz Weyer.
“Isso parece apenas uma remoção proposital de informações importantes que fornecem contracepção segura, o que considero aterrorizante”, acrescenta ela. “Parece que eles querem controlar as mulheres, não defendê-las.”
Embora as ordens executivas não mencionassem raça, vários recursos sobre racismo estrutural e disparidades de saúde em certas comunidades também desapareceram na sexta-feira.
Nos Estados Unidos, raça e etnia estão fortemente ligadas à saúde. Mulheres negras e nativas americanas têm duas a três vezes mais chances do que mulheres brancas de morrer durante a gravidez e após o parto, e seus bebês enfrentam aproximadamente o dobro do risco de morrer antes do primeiro aniversário. Diabetes, obesidade e outras doenças crônicas também são muito mais prevalentes, e a expectativa de vida é menor, entre grupos minoritários raciais e étnicos.
Informações sobre disparidades raciais são cruciais para ajudar os provedores de saúde a focar nos grupos mais em risco, afirma Linda Goler Blount, presidente da Iniciativa de Saúde da Mulher Negra, um grupo de defesa. Durante a pandemia de Covid, ela observou, pesquisadores de saúde descobriram que dispositivos de oxímetro de pulso, que medem os níveis de oxigênio no sangue, “não funcionavam em pessoas com pele escura.” Essa disparidade pode ter contribuído para taxas de mortalidade mais altas entre comunidades de cor.
“Se não pudermos coletar dados por raça, identidade étnica e identidade de gênero, veremos as taxas de mortalidade aumentarem”, diz Blount.
As ordens de Trump removeram mais de 8.000 páginas da web em mais de uma dúzia de sites do governo dos EUA. Em alguns casos, as ordens executivas também miraram o trabalho de cidadãos privados.