16 mar 2025, dom

‘Ainda Estou Aqui’ no Oscar reflete nova lógica de poder – 01/03/2025 – Ilustríssima

[RESUMO] Pesquisador comenta em livro os mecanismos que conferem maior ou menor poder cultural a artistas e obras pelo mundo. Embora alguns critérios ou estratégias sejam injustos e bastante restritivos, resultantes de beleza pessoal ou do idioma em que se expressa, autor destaca que artistas de países subdesenvolvidos cada vez mais conseguem furar barreiras, sobretudo por meio de redes sociais, como atesta o sucesso e as indicações ao Oscar do filme “Ainda Estou Aqui”.

Qual é o peso da obra de arte na consolidação do poder cultural de um artista? O país no qual o artista nasceu, o idioma falado, o contexto de suas obras e até a beleza do próprio artista são fatores de formação de poder cultural no século 21?

A busca por estas respostas despertou o interesse do jornalista e escritor Franthiesco Ballerini em seu programa de doutorado na Universidade Metodista de São Paulo. O autor descortinou algumas respostas intrigantes em sua tese, agora no formato de livro, “Poder Cultural: Mecanismos de Consolidação do Poder na Arte e no Entretenimento no Século 21”, lançado pela Summus Editorial.

Entre suas principais conclusões, uma negativa: o poder cultural é conquistado, muitas vezes, com estratégias injustas. A positiva: artistas de países subdesenvolvidos e distantes dos centros culturais mundiais já parecem capazes de driblar obstáculos que privilegiavam poucos, superando, até mesmo, seus colegas abastados.

E temos um exemplo que nos bate à porta na forma das várias premiações de “Ainda Estou Aqui”, que, por uma série de circunstâncias sincrônicas, vem enterrando o pífio “Emília Pérez” com louvor e parece mais próximo do triunfo no Oscar que qualquer outra obra nacional já indicada ao prêmio.

Mas, afinal, o que é poder cultural? “É a manifestação individual da consagração adquirida em âmbito mundial, capaz de influenciar pessoas, movimentar milhões de fãs e gerar lucros extraordinários e imediatos. Não se trata, portanto, de poder artístico, termo redutor que exclui a força do entretenimento audiovisual, nem sempre visto como arte”, diz Ballerini.

Para ele, o maior poder cultural advém, majoritariamente, de sistemas consolidados internacionalmente —”O Poder Suave”, tema e título de seu livro anterior, lançado em 2017 e finalista do Prêmio Jabuti na categoria economia criativa.

Nele, Ballerini pesquisou a formação do poder de Hollywood, da moda francesa, do balé russo, e também de poderosas manifestações culturais de países subdesenvolvidos, como o cinema indiano, conhecido como Bollywood, a bossa nova, o Carnaval e as telenovelas do Brasil e do México.

Agora, no novo livro, o foco do autor é desvendar o tamanho do poder de artistas inseridos, ou não, dentro de sistemas de poder suave. E os resultados são, no mínimo, curiosos. A começar pelo campo da telenovela. Ballerini comparou a atriz brasileira Adriana Esteves, nascida em 1969, com a mexicana Thalía, nascida em 1971.

“Thalía fez apenas sete telenovelas na vida, dentre elas ‘Maria Mercedes’ (1992), ‘Marimar’ (1994) e ‘Maria do Bairro’ (1995). E quase uma só personagem: a menina pobre que conquista o grande amor e a riqueza por meio do trabalho árduo e da humildade. Já Adriana fez dezenas de trabalhos televisivos. Foi amada pelo público pela megera domada Catarina de ‘O Cravo e a Rosa’ (2000), indicada ao Emmy Internacional no papel de Dalva de Oliveira em ‘Dalva e Herivelto – Uma canção de Amor’ (2010), e uma das maiores vilãs de telenovela da história, a Carminha de ‘Avenida Brasil’ (2012). No entanto, a revista ‘People’ elegeu Thalía uma das 25 latinas mais poderosas do mundo e a atriz mexicana ganhou até uma estrela na calçada da fama”, comenta o autor.

A que se deve esta aparente discrepância? Ele afirma que o conteúdo das obras nem sempre é o fator fundamental para a consolidação do poder cultural. Outras categorias têm um peso ainda maior.

“A Thalía soube explorar sua beleza latina. Ela também fala um idioma, o espanhol, muito mais influente, no campo artístico internacional, do que o português, haja vista o peso da comunidade hispânica nos Estados Unidos. Por fim, ao contrário de Adriana Esteves, que não possui contas próprias nas redes sociais, Thalía relembra o tempo inteiro, para seus milhões de fãs no Instagram, Youtube e TikTok, o sucesso de suas Marias, inclusive vendendo produtos licenciados”, afirma.

São as redes sociais, que Ballerini chama de meios de comunicação pós-massivos, que garantiram ao astro indiano Shah Rukh Khan um poder cultural maior do que o do norte-americano Brad Pitt. Em comum, diz o autor, ambos utilizaram de sua beleza pessoal para saltar de papéis populares a outros mais relevantes artisticamente.

Também “nasceram” dentro das duas indústrias cinematográficas mais poderosas do mundo, Pitt em Hollywood e Khan em Bollywood. O americano tem a vantagem do idioma mais popular do planeta, o inglês, o que ajudou a popularizar seus filmes.

“Mas no ápice de sua fama, ele e a ex-mulher, Angelina Jolie, se tornaram as estrelas mais perseguidas do Ocidente, o que talvez tenha afugentado Pitt das redes sociais. É aí que Khan saiu na dianteira”, comenta Ballerini.

Khan tem um longo casamento com Gauri Chhibber, desconhecida quando se conheceram, em 1991, com quem tem três filhos. Ele posta constantemente a rotina da família nas redes sociais, com 42 milhões de seguidores no Facebook, 30 milhões no Instagram e 42 milhões no X, formando uma multidão todas as noites em frente à sua casa em Mumbai, na esperança de um aceno do astro, o que quase sempre acontece de noite.

Em 2019, David Letterman entrevistou Khan. Após dias seguindo sua rotina em Mumbai, chamou-o de “a maior estrela de cinema do mundo”. “E ele estava certo”, concorda Ballerini.

Em sua obra, o pesquisador observa que o audiovisual se tornou o meio preponderante de formação do poder cultural de qualquer artista no século 21. No campo da música, por exemplo, sua pesquisa se voltou para o universo dos videoclipes, comparando Anitta com a britânica Dua Lipa.

Segundo ele, ambas possuem videoclipes com propostas estéticas e narrativas não muito diferentes. Ambas usam as mídias sociais para aumentar sua influência e não recuam de confrontos diretos com pessoas poderosas de outros campos.

Em 2020, Dua Lipa postou um vídeo para seus 46 milhões de seguidores no Instagram criticando a forma como as Forças de Defesa de Israel tratavam os palestinos. A ONG israelense Im Tirtzu abriu uma petição exigindo que suas músicas fossem banidas da rádio do Exército, a mais popular do país, mas não foi atendida.

O ex-presidente Jair Bolsonaro costumeiramente usava suas redes sociais para criticar posições de Anitta favoráveis à legalização da maconha e à eleição de Lula em 2022.

Embora a brasileira tenha quase o dobro de videoclipes que a britânica, Dua Lipa acumula mais poder cultural, levando-se em conta número de seguidores, vendagem de discos e repercussão na imprensa mundial.

“Aqui vemos o papel preponderante do idioma na consolidação do poder cultural dentro do campo musical. É por essa razão que Anitta tem investido muito tempo e dinheiro em videoclipes em espanhol e inglês, pois essa é a única categoria que ainda a distanciava da possibilidade de estar no centro do poder da música. Ela até repaginou o poder suave da bossa nova, adicionando ‘trap’ e um contexto mais oportuno em ‘Girl from Rio’ (2022). E está dando certo”, afirma.

Oportunismo, ou compreensão de um espírito do tempo, é o que muitos artistas utilizam como via rápida para ganhar poder cultural, segundo o livro. E isso não é de hoje.

Ballerini conta como diversos artistas da Renascença do século 15 produziam obras encomendadas ao gosto da nobreza e do papado para garantir renda e poder. Seis séculos depois, as coisas não mudaram tanto assim. Reproduzir valores benquistos em certos grupos é um caminho mais seguro para a consagração de um artista.

Ele cita um exemplo: “Emerald Fennell nunca havia ganhado um prêmio relevante como atriz, diretora ou roteirista. Mas em 2020, seu filme, ‘Bela Vingança’, um raso entretenimento adolescente, ganhou o Oscar de melhor roteiro original. Por quê? Porque sua violência, não muito diferente da de franquias como ‘Rambo,’ é perfeitamente adaptada ao nosso tempo e contexto: é a vingança de uma mulher (feminismo?) contra homens abusivos”, diz.

Na esteira do prêmio mais cobiçado da indústria cinematográfica, ao qual o Brasil concorre em três categorias (melhor filme, atriz e filme internacional), Franthiesco Ballerini reflete sobre o peso da Academia.

“A decisão do Oscar de premiar um filme em detrimento de outro sempre seguiu a lógica de poder da cultura dominante sobre a cultura dominada. Mesmo quando se atribui o prêmio principal a filmes estrangeiros, como o sul-coreano ‘Parasita’, isso reforça o poder do próprio Oscar e seu status de maior honraria mundial. É uma construção simbólica pensada para reforçar, sempre, a distinção e a hierarquia de uma cultura, a norte-americana, sobre a outra, estrangeira.”

O autor menciona que o sucesso de “Ainda Estou Aqui” é favorecido, além da óbvia qualidade do filme, pelo fato de o diretor Walter Salles e Fernanda Torres terem “rastros” no universo da Academia de Los Angeles, resultado de “Central do Brasil”, que Salles também dirigiu, indicado a dois Oscars em 1999, melhor filme estrangeiro e melhor atriz, para Fernanda Montenegro, mãe de Torres. Na ocasião, Fernanda perdeu para Gwyneth Paltrow, jovem atriz cuja carreira era turbinada por um pesado esquema de marketing.

Ballerini considera que Fernanda Torres tem notável chance de ganhar o Oscar “quando sua concorrente, Karla Sofía Gascón, vai a público dar declarações polêmicas e descoladas dos valores culturais contemporâneos, tão importantes para uma premiação desse calibre, cuja popularidade segue em decadência”.

Não estaria mais perto da vitória, porém, a atriz norte-americana Demi Moore, protagonista de vários sucessos comerciais, mas até hoje esnobada pelo Oscar? O autor pondera: “Talvez, mas premiar Fernanda seria não só uma forma de ‘fortalecer a marca’, mostrando-se democrático e plural, como também ratificar valores hoje tão em alta para a própria Academia, como a diversidade cultural, étnica e social.”

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