Fazia dez anos que uma criança não morria de sarampo em território americano. Esse tipo de tragédia –e sim, é tragédia, não há outro nome para o que houve– voltou a acontecer nesta semana, no oeste do Texas, em meio a um surto da doença afetando principalmente menores de idade não vacinados.
Robert F. Kennedy Jr., o secretário de Saúde escolhido por Trump e notório espalhador de teorias da conspiração estapafúrdias contra vacinas, deu de ombros e disse que surtos desse tipo “não são incomuns”. De lambuja, ainda inflou o número de mortos, dizendo que duas pessoas tinham morrido.
Nada disso deveria nos surpreender. Já está matematicamente demonstrado que o desprezo pela vida alheia e pelos fatos é o modus operandi da extrema direita. É a banalidade do mal, o mais puro suco de darwinismo social (perdoai-nos, Darwin, eles não sabem o que fazem) aplicado à saúde pública.
A coisa fica ainda mais feia, porém, quando até as pessoas que reconhecem a importância da vacinação acabam caindo na mesma lógica. “Darwin cuida”, dizem eles: se a família foi burra o suficiente para escolher não vacinar seus filhos, ao menos perderá a chance de passar seus genes adiante.
Banalidade do mal de novo, infelizmente. Resta-me repetir o óbvio, como fiz durante os anos intermináveis da pandemia de Covid-19: a vacinação só funciona quando é um pacto coletivo. Ninguém se salva sozinho, por mais eficaz que uma vacina seja, porque não existem nem existirão vacinas perfeitas com 100% de proteção individual.
Tomemos o caso do próprio sarampo. O vírus causador da doença é um dos mais transmissíveis que conhecemos, o que significa que a proteção coletiva fornecida pela vacinação só se torna algo próximo do inexpugnável quando cerca de 95% da população suscetível é imunizada.
Abaixo desse limiar, a doença ainda consegue se espalhar e causar estragos, em especial entre não vacinados, mas também entre quem se vacinou, porque sempre existirão pessoas com sistema de defesa do organismo de funcionamento abaixo do ideal, ou cujo corpo não reage da forma esperada à imunização.
E, como as novas gerações sempre nascem com sistema de defesa “ingênuo”, como diz o jargão dos especialistas –isto é, sem saber como lidar de forma específica com vírus e outros causadores de doenças–, não alcançar o limiar de proteção coletiva equivale a dar sobrevida ao matador de gente.
Tudo isso vale, é claro, para qualquer doença infecciosa. Vale, por exemplo, para a poliomielite ou paralisia infantil, que ainda sobrevive em alguns bolsões do planeta por causa de desconfianças a respeito da vacinação, geradas por ignorância e brigas geopolíticas.
As pessoas esquecem que doenças infecciosas eram capazes de varrer três continentes de ponta a ponta em poucos anos em épocas que tinham como o meio de transporte mais rápido o navio a vela. Para esse tipo de moléstia, a humanidade sempre será uma coisa só: um único banquete a ser devorado de ponta a ponta da mesa, ainda mais quando as viagens de avião funcionam como delivery a jato.
Não há muro que Trump construa capaz de mudar isso. E quem vomita desinformação para milhões de seguidores não precisa puxar gatilho nenhum para ficar com as mãos sujas de sangue.