Nessa semana postei um vídeo que, apesar de já conhecido por muitos, gerou debate. Nele, Gabriel García Márquez conta sobre o perrengue financeiro que enfrentou para escrever “Cem Anos de Solidão”.
Ele não estava sozinho. Tinha mulher e filhos. Venderam o carro para pagar as contas. Não foi o bastante: logo estavam devendo novamente aluguel. O proprietário da casa telefonou. A mulher de Gabriel, Mercedes, deixou-o na linha e sussurrou para o marido: falta quanto pra você acabar esse livro? E ele: seis meses. Mercedes negociou mais seis meses de inadimplência com o proprietário, prometendo que pagariam em seguida.
É o próprio García Márquez quem conta essa história, acrescentando que depois ainda precisaram penhorar o aquecedor, o secador de cabelos e a batedeira. O esforço valeu a pena, quem leu “Cem Anos de Solidão” sabe disso.
O que gerou discussão foi o comportamento de Mercedes. Neste mesmo vídeo, García Márquez conta que durante 18 meses não saiu do quarto em que escrevia. Além do aperto financeiro, foi a mulher quem cozinhou, lavou, cuidou dos filhos e provavelmente bateu na porta da vizinha para pedir a batedeira emprestada.
Mercedes estava errada de se sacrificar dessa maneira, como alguns sugeriram? Acho que não, inclusive admiro essa mulher que, além de ser companheira, soube investir para depois (espero) ganhar em direitos autorais.
A questão, para mim, é a reciprocidade. García Márquez teria feito o mesmo por sua mulher, numa situação inversa? Duvido, não por questionar o caráter do autor, sobre o qual nem tenho conhecimento, mas por uma óbvia e previsível questão cultural.
Sabemos de inúmeras mulheres que se sacrificaram por seus maridos artistas e de pouquíssimos que fizeram o mesmo por suas cônjuges. Muitas vezes, essas mulheres também tinham talento para a arte e deixaram de pilotar canetas ou pincéis —ou fizeram isso por menos horas– para que eles pudessem fazer.
Teria Jorge Amado feito por Zélia Gattai o mesmo que ela fez por ele? Teria Diego Rivera aceitado o lugar de coadjuvante, como aceitou ao seu lado, por toda a vida, Frida Kahlo?
Não posso afirmar nada pelos outros, mas posso afirmar por mim. Quando eu tinha 30 e poucos anos, vivia com um músico. Tínhamos sonhos parecidos: eu queria lançar um livro, ele queria lançar um álbum. Combinamos que ajudaríamos um ao outro.
Eu fui a primeira a me empenhar. Durante um bom tempo, encarei um emprego que não queria para pagar as contas da casa, acumulei as tarefas domésticas, dei o dinheiro que tinha na poupança para a mixagem do tal álbum, até que foi lançado.
Enfim chegou a minha vez! Quando fui passar o manche da casa e os boletos para ele, recebi um “as coisas mudaram e agora não vai dar pra te ajudar”.
Como a maioria das outras mulheres, acabei fazendo por conta: escrevendo publicidade com uma mão e literatura com a outra, fritando ovos com a direita e cortando frases com a esquerda, até finalmente lançar meu primeiro livro.
Não sei se teria logrado nessa tarefa se tivesse continuado com ele, se tivesse vários filhos. Sempre penso nos talentos que morreram soterrados debaixo de um avental de cozinha. Em uma sociedade menos desigual, estaríamos lendo outros “Cem Anos de Solidão”?