O Parlamento tem o dever de discutir, rejeitar ou aprovar todos os projetos de lei a ele submetidos. A legislação eleitoral está em constante aperfeiçoamento e é salutar sua modificação pontual por meio do devido processo legislativo, sempre buscando o aprimoramento do Estado de Direito e a produção de normas jurídicas capazes de resguardar a lisura e a normalidade das eleições e todos os valores caros à democracia.
A lei complementar 64/1990 —com as modificações ocorridas pela lei complementar 135/2010, a Lei da Ficha Limpa— há muito reclama uma atualização. Há, de fato, situações de tempo de inelegibilidades excessivos e pouco razoáveis, e que não apresentam, com a clareza que o art. 14, § 9º da Constituição exige, o seu prazo de duração e cessação.
Apenas como exemplo, são aqui lembradas as condenações criminais e as condenações por improbidade administrativa (art. 1º, I, “e” , e, “l” da LC 64/1990). Nesses casos, a inelegibilidade flui a partir da condenação em segundo grau e se estende por oito anos após o cumprimento da pena. Considerada a demora natural dos processos judiciais e suas idas e vindas em razão de nulidades, não são raras as situações em que uma pessoa ficará impedida por décadas de se candidatar.
Todavia, os vários projetos de lei complementar em discussão no Congresso Nacional não pretendem reformar o sistema de inelegibilidades à luz do seu aprimoramento, mas sim como descarado casuísmo. Não se quer fazer mudanças estruturais e harmônicas nas regras da lei complementar 64/1990, mas se objetiva apenas e tão somente modificar a redação do dispositivo para reduzir o prazo daquele tipo de inelegibilidade de oito para dois anos. Trata-se de uma reforma que tem interesse pessoal, não interesse público.
E é claro que essa redução arbitrária viola a racionalidade do sistema de inelegibilidades e afronta o art. 14, § 9º da Constituição Federal, pois se deixa de se proteger adequadamente a democracia brasileira contra atos de abuso de poder ocorridos na eleição.
Não há dúvidas de que atos graves e afrontosos à regularidade das eleições exigem resposta do Estado-juiz dura e capaz de dissuadir novas agressões contra a democracia brasileira.
A lei, no Estado democrático de Direito, tem sentido formal pelo fato de que emana do Poder Legislativo (ressalvadas algumas hipóteses previstas na Constituição) e, sentido também material, porque lhe cabe o papel de realizar os valores consagrados pela Carta sob a forma de princípios fundamentais —e um princípio fundamental é que, na elaboração da lei, o interesse coletivo se sobrepõe ao interesse individual.
As propostas de alteração dessa espécie atentam contra a legitimidade do processo eleitoral. Devem ser extirpados das propostas todos os tipos de condutas abusivas no processo eleitoral.
Não por outro motivo, a partir da Revolução de 1930, do Movimento Constitucionalista de 1932 e da Constituição de 1934 se optou por uma Justiça Eleitoral no país. E tenha-se como indissociável do presente debate que o prazo fixado para a sanção de oito anos na lei complementar 64/1990 foi fruto de intenso debate legislativo, ficando consensuado que tal período (equivalente ao mandato de um senador) era o tempo razoável, proporcional e pedagógico —nem severo demais a jogar políticos no ostracismo nem brando em demasia a esvaziar o sentido da reprimenda estatal.
Como ensinam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em “Como Salvar a Democracia”: “As democracias enfrentam problemas quando partidos tradicionais toleram, perdoam ou protegem extremistas autoritários”.
E, aqui, reafirmamos nós: com democracia não se brinca.
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