21 mar 2025, sex

Ainda Estou Aqui: Como foi a preparação do elenco do filme – 27/02/2025 – Ilustrada

Para que as cenas de “Ainda Estou Aqui” fossem filmadas e chegassem às telas, tantas outras fora do roteiro foram ensaiadas pelos atores. Era o chamado “roteiro pirata”, conta Amanda Gabriel, a preparadora de elenco do filme, ou seja, situações que conversavam com a história principal e ajudavam os talentos a se apropriarem de seus personagens antes de a câmera rodar.

Uma destas cenas se relaciona com um trecho do livro de Marcelo Rubens Paiva que inspirou o filme, em que ele narra que, quando criança, jogava bola na rua e quebrou umas cinco vezes as vidraças da garagem de um vizinho. O sujeito, então, ia reclamar com Eunice, a mãe de Marcelo, e a criança tinha de varrer a calçada dele.

Na cena pirata ensaiada, Guilherme Silveira, o menino que interpreta Marcelo, entra em casa depois da travessura, se esconde debaixo da mesa e pede a Pri Helena, a atriz que vive a empregada Zezé, para que ela fale ao vizinho que o seguia que o garoto não está em casa. Zezé, então, inicia uma conversa com Marcelo e, para chegarem a um acordo, os dois negociam figurinhas de um álbum de futebol dos anos 1970, época em que a maior parte do filme se passa.

O exemplo ilustra um dos métodos de trabalho de Gabriel, de 43 anos, a preparadora de elenco do filme de Walter Salles, que atuou também em outros longas emblemáticos do cinema nacional recente, como “Tatuagem”, de 2013, “Aquarius”, de 2016 e “Bacurau”, de 2019. Embora de bastidor e menos conhecida por quem não é do meio, sua profissão é essencial em determinar como os personagens saem do roteiro para a tela e serve para “que todo o elenco trabalhe no mesmo tom”, ela diz.

No caso de “Ainda Estou Aqui”, ela conta que, para a seleção dos atores que vivem os cinco filhos do casal Eunice e Rubens Paiva, a produção do filme “precisava dos anos 1970”. Na busca que resultou na escolha de Guilherme Silveira, hoje com 14 anos, para interpretar Marcelo, e Cora Mora, atualmente com 12, para viver Babiu, a equipe foi atrás de “crianças com uma história de um corpo que brinca na rua, o que é cada vez mais raro”, afirma ela.

Silveira conta que foi descoberto enquanto brincava na praia do Leblon, no Rio de Janeiro, com seu primo, sua mãe e seu padrasto. Ele lembra que uma pessoa da produção do filme se aproximou e perguntou se ele queria fazer um teste para o elenco. A mãe desconfiou que poderia ser golpe, mas depois de um teste online no qual o garoto foi aprovado tudo ficou mais sério. Em seguida, Silveira foi chamado para uma prova presencial, e por fim houve uma seleção para decidir se o ator estreante interpretaria Marcelo ou um amigo.

A experiência no filme fez com que Silveira pensasse em ser ator profissional, algo que ele diz não ter considerado antes —sempre ativo, uma de suas ideias era se tornar jogador de futebol, esporte que ele pratica com seus amigos na praia depois da escola, várias vezes por semana, alternado com futevôlei. Durante as gravações, ele lembra que Selton Mello e Fernanda Torres, que afirma serem muito carismáticos, contavam bastante piada.

No caso de Bárbara Luz, 22, que vive Nalu, e de Valentina Herszage, 26, intérprete de uma de suas irmãs, Veroca, elas já tinham naturalmente uma cadência que poderia se encaixar na década de 1970, diz a preparadora. “A gente hoje fala muito rápido, é muito acelerado, tem muita pressa, a gente tá mais tenso. Era preciso encontrar um corpo que andasse, se movesse, uma fala que que remontasse àquela época.”

Os trejeitos da personagem de Herszage, uma jovem adulta que passa um tempo em Londres, onde frequenta lojas de discos e se encanta pelos Beatles e pela contracultura, foi inspirada numa fotografia de Gal Costa de pernas abertas. A ideia era que a imagem de Veroca comunicasse ao espectador a diferença geracional em relação à sua mãe, mais comportada no vestir e no andar.

De acordo com a preparadora de elenco, um dos desafios de seu trabalho em “Ainda Estou Aqui” era desenvolver com os atores uma atuação que desse conta do não dito, especialmente num longa sobre a história de uma família que viveu no segredo por muito tempo, de uma mãe —interpretada por Torres— que não conta aos filhos que o pai deles foi preso pelos agentes da ditadura.

Gabriel lembra da cena em que Eliana, outra das filhas do casal, interpretada por Luiza Kosovski, hoje com 25 anos, diz para a sua mãe que está tudo bem depois de voltar de uma delegacia de polícia onde havia sido torturada. Embora a agressão não apareça no filme, a preparação incluiu simular um interrogatório e a pressão de um centro de detenção da ditadura para que a atriz “carregasse essa memória com ela para naquela cena dizer que não tinha acontecido nada”.

Fora do cinema, a Eliana da vida real narrou em entrevistas à imprensa e em depoimentos à Comissão da Verdade, na década de 2010, os abusos que sofreu durante as 24 horas em que ficou presa, material que serviu de inspiração para a preparadora de elenco e a atriz.

A preparadora conta ainda que seu método de trabalho não mudou com Fernanda Torres e Selton Mello, os atores mais experientes. Ela leu o roteiro individualmente, com cada um deles, momento no qual faziam uma análise de seus personagens. Em seguida, eles ensaiavam sem estarem com as falas todas decoradas nem totalmente prontos. “Você descobre as cenas fazendo”, diz Gabriel.

O trabalho com o elenco se estendeu por meses, e incluiu seis semanas de ensaios na casa do Leblon onde o filme se passa. A locação já estava com a cenografia, com “bituca de cigarro no cinzeiro e objetos em todas as gavetas”, conta a preparadora. Por fim, houve três dias de ensaio geral, em que as cenas do roteiro foram quase todas repassadas cronologicamente antes das gravações começarem.

“Isso é comum no teatro, e muito incomum no cinema. Isso só foi possível porque a produção entendeu a importância disso para o filme”, afirma a preparadora. “E acho que é visível, né?” Parece que sim, dadas as três indicações ao Oscar que o filme conquistou, sendo uma na categoria de melhor atriz para Fernanda Torres.

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