17 mar 2025, seg

Ainda Estou Aqui: Como Walter Salles escancarou o Brasil – 01/03/2025 – Ilustrada

Quando o nome “Central do Brasil” ecoou no saguão naquela cerimônia do Globo de Ouro de 1999, Walter Salles subiu ao palco com um largo sorriso e se fixou distante do microfone, deixando o caminho livre para Fernanda Montenegro agradecer pelo prêmio de melhor filme em língua estrangeira.

Agora que “Ainda Estou Aqui” segue trajetória parecida, o cineasta mais uma vez desvia dos holofotes, fazendo de Fernanda Torres o rosto da campanha rumo ao Oscar, por mais que as chances de vitória, hoje, sejam mais sólidas em filme internacional que em atriz –há ainda uma surpreendente indicação a melhor filme.

O fato pode parecer irrelevante, mas demonstra um forte traço de sua personalidade. Discreto, reservado e sóbrio, ele nem parece um dos cineastas de maior prestígio e fama que o cinema brasileiro já produziu.

Seus filmes receberam sete indicações ao Oscar, sem falar nos prêmios do Bafta, a maior láurea do cinema britânico, e dos festivais de Berlim, Cannes, Veneza, Sundance e San Sebastián atrelados ao seu nome, graças também a “Diários de Motocicleta” e “Abril Despedaçado”. Mas nem por isso ele faz pose de celebridade.

Aos 68 anos, o cineasta recorre à discrição de um blazer e camiseta básica em muitas de suas aparições públicas, não é presente nas redes sociais e passa pelos tapetes vermelhos em modo “low profile”, contrariando as pavoneadas que correm nas veias de Hollywood, uma meca de personalidades agigantadas.

Talvez por berço, o glamour nunca o deslumbrou. Filho do diplomata Walther Moreira Salles, que foi embaixador nos Estados Unidos e responsável por negociar a dívida externa brasileira no segundo governo de Getúlio Vargas, o cineasta é um dos herdeiros do maior banco do país, o Itaú Unibanco, fruto de fusões que se iniciaram com a Casa Bancária Moreira Salles, há um século.

Mas não foi só a fortuna pessoal, avaliada em R$ 26,5 bilhões, que deu ao artista acesso às elites intelectuais e artísticas do mundo, gestando o cineasta que desfila hoje no Oscar. Walther, o pai, era amigo de algumas das figuras mais importantes do século passado, como Assis Chateaubriand, Ary Barroso, Greta Garbo e os Rockefellers. Mais do que pelo tino comercial, era conhecido por seus jantares e festas, um de seus maiores ativos políticos.

A mãe, Elisa Moreira Salles, ou Elisinha, era descrita em jornais da época como uma mulher renascentista. Era culta, elegante, politizada, um pouco como Eunice Paiva. Integrou uma comitiva que visitou a China às vésperas da Revolução Cultural de Mao Tse-Tung e relatou a ebulição social que testemunhara à revista O Cruzeiro. “Quanto vermelho! Quanto barulho”, ela escreveu.

Em sua casa na Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro, Elisinha promovia jantares concorridos. Esteve presente no lendário baile do preto e branco de Truman Capote, vestiu o mesmo Givenchy que Audrey Hepburn e Wallis Simpson num evento e aparece nos diários deixados por Andy Warhol, pai da pop art e de festas tão faraônicas que fariam inveja aos coquetéis pós-Oscar.

“Existia uma grande liberdade para que cada um de nós definisse o seu destino. Nunca fomos tolhidos nos nossos percursos individuais”, diz João Moreira Salles, irmão de Walter e também cineasta. Na sua obra está o documentário “No Intenso Agora”, feito a partir de filmes caseiros da viagem da mãe à China.

“Jamais faltou estímulo. Fazem parte das minhas memórias de infância a grande biblioteca do meu pai e as visitas quase compulsórias a museus, na companhia da minha mãe. Na época, era o preço que a gente tinha que pagar para depois se divertir. Hoje, sei que muito daquilo ficou. Ela educou o nosso olho.”

Quando adolescente, o artista tinha um laboratório de fotografia no porão de casa. “O germe do cinema talvez estivesse ali”, diz João. Ele lembra que, numa viagem, o irmão levou uma câmera, reuniu os amigos e dirigiu um filme caseiro. A namoradinha da época era a protagonista, e João fazia as vezes de um músico incompreendido.

“Todas as cenas eram improvisadas. Como as pessoas inventaram na hora o que dizer, aconteceu uma coisa interessante. As implicâncias da vida foram levadas para a cena. Uma delas acabava com uma amiga dizendo para outra, com quem havia brigado, ‘sua putinha!’. Ou seja, a encenação dizia a verdade. Quem sabe aquilo não ficou registrado na cabeça dele.”

Walter também tem como irmãos Pedro e Fernando Moreira Salles. O primeiro integra a presidência do conselho de administração do Itaú Unibanco. O segundo é, entre outras coisas, um dos sócios da Companhia das Letras, uma das principais editoras do país.

O quarteto integra o conselho do IMS, o Instituto Moreira Salles, centro cultural com sedes no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Poços de Caldas, em Minas Gerais, e também tem uma fatia da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração, líder mundial na comercialização de nióbio. O minério, raro, tem todo tipo de uso, de ligas para a construção de pontes à fabricação de marca-passos.

Investimentos no setor energético, em transporte e na Alpargatas, fabricante dos chinelos Havaianas, completam a variada cartela de investimentos da família. Com João, Walter compartilha também a produtora Videofilmes, que está por trás de “Ainda Estou Aqui”.

Na outra ponta da árvore genealógica estão os dois filhos, Vicente, de 18 anos, e Helena, de 16 –enquanto o pai corria o mundo com “Ainda Estou Aqui”, ela viralizava com uma câmera menor em mãos, fazendo vídeos de TikTok. Ambos são fruto do casamento de duas décadas com a artista plástica Maria Klabin, herdeira da família que é a maior exportadora de papel do país.

Procurada para falar sobre o marido, Klabin recusou respeitosamente, explicando que havia entre eles um acordo para que não misturassem a vida profissional e a pessoal.

Fortes bases familiares e financeiras teriam ajudado Walter, acredita João, a trilhar o incerto caminho do cinema nacional, tão dependente de dinheiro público —”Ainda Estou Aqui”, ao contrário do que foi espalhado nas redes sociais por políticos de direita, não usou verbas da Lei Rouanet.

Diz também que o olhar social e humanista, termo que se repete nas bocas de muitos dos que trabalharam com Walter, são consequências de “viver no Brasil e não ser alheio a quem somos e ao que nos cerca”.

Essa curiosidade e sensibilidade foi o que aproximou Walter de Vinícius de Oliveira, o menino de “Central do Brasil” que hoje, aos 39 anos, rememora o primeiro encontro com o cineasta, enquanto engraxava sapatos no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro.

Oliveira ficava de olho em homens trajados em ternos e sapatos sociais, mas Walter não era um deles. Decidiu abordar aquela figura de jeans e tênis porque o movimento, naquele dia, era fraco. Pediu um trocado e foi convidado para um lanche.

Entre as mordidas que davam nos sanduíches, o cineasta o convidou para fazer um teste. Depois de audições com 1.500 crianças em todo o Brasil, ele havia enfim encontrado o protagonista de “Central do Brasil”.

“Cinema para o Walter é falar do lugar em que ele vive, não só do lugar que a família dele ocupa, mas do Brasil como um todo”, diz Oliveira, que voltou a trabalhar com Walter em “Linha de Passe”, de 2008.

O ator, então com 12 anos, sem experiência e compartilhando o protagonismo com Fernanda Montenegro, lembra os três meses de filmagem envoltos em muito zelo e carinho. O cineasta, que não tinha filhos à época, o chamava para ir ao cinema, jantar e dormir em sua casa após as gravações. “Era uma relação muito íntima, amável, quase de pai e filho”, diz Oliveira.

“Se você olhar para a história do cinema, ela está cheia de exemplos de pessoas de determinadas classes olhando para as de outras. Seria trágico se eu só falasse com os meus. Eu me interesso muito mais pelas pessoas que eu não conheço, pelos territórios a que não fui”, disse Salles em entrevista à BBC britânica, há quase duas décadas, ao ser questionado sobre a forte presença da violência e da pobreza em sua filmografia.

André Degenszajn, à frente do Instituto Ibirapitanga, organização filantrópica que o artista criou há oito anos para combater o racismo e democratizar o acesso à alimentação de qualidade, o vê como uma pessoa amigável, que cumprimenta todos os garçons quando entra num restaurante, anda a pé e pega táxi sem a companhia de seguranças ou assessores.

Na ala filantrópica, era importante despessoalizar o instituto, afastando a organização de sua carreira no audiovisual. “Ele não queria que fosse um espelho dos desejos dele, um altruísmo individual. Ele se faz presente em reuniões semanais, acompanha as doações, conhece quem trabalha no Ibirapitanga, mas você jamais vai ver uma biografia dizendo ‘Walter Salles, cineasta e filantropo’”, diz Degenszajn.

Murilo Hauser e Heitor Lorega, premiados no Festival de Veneza pelo roteiro de “Ainda Estou Aqui”, corroboram com a ideia de que ele é muito presente em tudo o que se propõe a fazer. Centrado, chega às gravações com um plano muito claro, mas convida as opiniões dos outros para dentro de seus filmes.

Sua relação de amor com a música faz com que a trilha sonora seja pensada do primeiro ao último suspiro dos longas, e aquela com a escrita faz dele alguém com enorme respeito ao roteiro.

É ainda perfeccionista, característica que ronda seus filmes até quando já estão finalizados. A reportagem apurou que “Ainda Estou Aqui” só não abriu a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado porque o sistema de som da Sala São Paulo, que abrigou o evento, não era apropriado para o que seu diretor idealizou enquanto experiência cinematográfica.

Codiretora de “Terra Estrangeira” e amiga de longa data, Daniela Thomas compara o cinema detalhista, introspectivo e sóbrio de Walter ao de Jia Zhang-ke —chinês que ganhou um documentário biográfico pelas lentes dele– e de Abbas Kiarostami. Também adiciona à fórmula o neorrealismo italiano e suas denúncias do dia a dia do povo real.

“Ele é um cineasta humanista, no sentido mais profundo da palavra. Entende o poder do cinema, seu potencial para expressar toda uma identidade. Como o Zhang-ke e o Kiarostami, que transformaram nomes ideológicos e geopolíticos em indivíduos, Walter botou sua nação no mundo, divulgou uma identidade, não um país. Eles buscam a alma, a individualidade daquilo que retratam”, diz a cineasta, encontrando ecos na expansão do drama familiar de “Ainda Estou Aqui” para aquele vivido por todo o Brasil.

De acordo com Rodrigo Santoro, dirigido por Walter em “Abril Despedaçado”, filme que questionava o papel da violência ao acompanhar um rapaz impelido pelo pai a vingar a morte do irmão mais velho, o cineasta é capaz de atravessar o espectador justamente ao buscar o que seus personagens sentem. “Waltinho é um poeta que mergulha na complexidade humana, com um olhar sempre muito sensível e respeitoso”, afirma.

A segurança financeira, porém, não torna seu processo criativo exatamente tranquilo. Thomas acredita que o fato de ele não ter de “botar a casa no prego ou depender de editais” para filmar é determinante. “Dito isso, das pessoas com quem trabalho, ele é das mais meticulosas, com vários estágios de dúvidas, sempre vivendo um tumulto interno.”

Concentração é a chave para lidar com o sentimento e se aproxima de uma característica fundamental em qualquer bom piloto de automobilismo. Por mais fora do personagem que pareça, Walter quase seguiu carreira profissional na área, que o seduziu nos anos 1970, graças às vitórias de Emerson Fittipaldi.

O cineasta foi bicampeão de kart no Rio de Janeiro, mas parou de correr quando se matriculou no curso de cinema da Universidade do Sul da Califórnia, instituição que é referência em Los Angeles e já formou nomes como Gregg Araki, John Carpenter, George Lucas e Ron Howard.

Voltou para as pistas nos anos 1990, entre os intervalos das gravações de “Terra Estrangeira”, chegou a ser campeão paulista de kart em sua categoria e, novamente, aposentou o capacete. Nos anos 2000, disputou a GT3 Brasil ao lado de Ricardo Rosset.

Ao Globo Esporte, naquela época, comparou o hobby a uma relação amorosa, que reencontrava vez ou outra. “O cinema é minha verdadeira paixão. Não conseguiria viver sem o cinema, mas consigo viver sem o automobilismo, desde que eu possa sentar, no domingo pela manhã, ligar a TV e ver uma corrida”, afirmou.

No cinema, a história é outra. Com o prestígio de “Ainda Estou Aqui”, a mais concreta chance do Brasil no Oscar em anos, Walter Salles ganhou mais combustível. Sem dar detalhes, vem dizendo que já tem um roteiro para gravar em seguida, mostrando que não vai desacelerar tão cedo.

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