16 mar 2025, dom

Ainda Estou Aqui vence o Oscar e foge do seu eurocentrismo – 03/03/2025 – Ilustrada

Demorou quase um século, mas o Brasil foi enfim laureado com um Oscar na noite deste domingo, após uma emocionante campanha de “Ainda Estou Aqui”. O longa de Walter Salles venceu em filme internacional e pôs pela primeira vez um homenzinho dourado na mão de um brasileiro.

“Obrigado em nome do cinema brasileiro. Estou honrado em receber isso em meio a um extraordinário grupo de cineastas. Esse prêmio é para uma mulher que depois de uma perda sofrida num regime autoritário decidiu resistir. Seu nome é Eunice Paiva. Vai para duas mulheres extraordinárias que deram vida a ela, Fernanda Torres e Fernanda Montenegro”, disse Salles, em seu discurso.

Era difícil imaginar que venceria também a estatueta de melhor filme, que foi para “Anora”, embora em melhor atriz, com Fernanda Torres, houvesse chances reais —Mikey Madison, também de “Anora”, levou a estatueta.

Completam os principais premiados da noite Sean Baker, de “Anora”, em direção, roteiro original e montagem; Adrien brody, de “O Brutalista”, em ator; Zoe Saldaña, de “Emilia Pérez”, em atriz coadjuvante, e Kieran Culkin, de “A Verdadeira Dor”, em ator coadjuvante. Já roteiro adaptado ficou com “Conclave”. A festa, porém, é dos brasileiros.

Ao desbancar o letão “Flow”, o alemão “A Semente do Fruto Sagrado”, o dinamarquês “A Garota da Agulha” e, mais importante, o francês “Emilia Pérez”, que começou a temporada como favorito e liderou a lista de indicados deste Oscar, com 13 menções, “Ainda Estou Aqui” enfrentou o status quo e o eurocentrismo que historicamente domina a categoria.

Logo depois da Itália, a França é o país que mais vezes venceu a estatueta de filme internacional, já chamada de filme em língua estrangeira, com 12 láureas. Dinamarca e Alemanha vêm pouco atrás, com quatro e três prêmios, respectivamente. É um tempero a mais para o gostinho de vitória.

Um dos prêmios da França, aliás, foi em 1960, para “Orfeu Negro”, que curiosamente lembra as polêmicas de “Emilia Pérez” por ser uma produção francesa, de diretor francês, com elenco em boa parte estrangeiro, mas com uma história inegavelmente brasileira e falado em português —ou mexicana e em espanhol, no caso do musical de Jacques Audiard.

Desde a inauguração da categoria, o Oscar foi para europeus em 60 das 77 vezes. No caso dos latino-americanos, venceram apenas México, com “Roma”, em 2019, Chile, com “Uma Mulher Fantástica”, em 2018, e Argentina, com “A História Oficial”, em 1986, e “O Segredo dos Seus Olhos”, em 2010.

“Ainda Estou Aqui” vencer, nesta quinta tentativa do Brasil, significa uma fuga de uma tradição eurocêntrica, em parte porque a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas tem adotado medidas para diversificar seus votantes.

Mais heterogênea, a instituição tende a olhar com mais atenção para o que se produz fora do hemisfério norte, dando chance par a que países historicamente renegados ou com pouca tradição cinematográfica também mostrem ao mundo sua arte, seu povo, sua língua e seus talentos.

As mudanças, claro, são graduais. A derrota de Fernanda Torres para Mikey Madison mostra que o Oscar ainda tende a concentrar seus prêmios, e que a alma daquela instituição que não premiou Fernanda Montenegro, nos anos 1990, segue ali. Para o Brasil, a derrota de Torres parece um déjà vu, 26 anos depois de “Central do Brasil”.

A tendência com a vitória de “Ainda Estou Aqui”, porém, é que o filme continue fazendo sucesso nas salas de cinema do Brasil, renovando o interesse daqueles que não o viram e sendo revisto por alguns dos cerca de 5 milhões que já compraram ingressos.

Indiretamente, o filme de Salles terá papel importante na formação de um público mais curioso pela filmografia nacional. Lá fora, também despertará a atenção dos estrangeiros pelo que se produz aqui. Não é exagero pensar que, nas próximas edições do Oscar, os inscritos pelo Brasil para tentar vaga em filme internacional terão mais chances simplesmente porque haverá mais votantes interessados em os ver.

A noite deste domingo foi de simbolismo enorme, mas não só. Terá efeito prático, numa vitória que pode ser apenas o primeiro passo num novo e empolgante caminho para o cinema nacional.

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