15 mar 2025, sáb

Articular o que não tem – 15/03/2025 – Muniz Sodré

Nesse instante de comida cara, baixa popularidade e aumento dos blefes do Centrão, Lula aparenta uma guinada à esquerda, instalando a presidente do PT na articulação política. Pode ser que esteja preparando bases para a eleição de 2026, mas há uma grande dose de anacronismo nisso tudo, incongruente com a situação do país. Por um lado, a macroeconomia vai bem, com o PIB em alta e o desemprego em baixa, sem despertar muita atenção. Por outro, as instituições funcionam, processando golpistas e estabilizando mecanismos democráticos. A política verdadeira, porém, é uma barafunda. A ela, ou a sua ausência, se devam talvez os índices de desaprovação.

É oportuno rever os termos de um debate consequente à palestra em 1993 na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, intitulada “Política e Filosofia”, pelo pensador e ativista francês Alain Badiou. Num dos seis textos que compõem a polêmica (em “Política – Partido, Representação e Sufrágio”), levanta-se o tema da articulação. Naqueles idos, articular tinha a ver com transformação social por parte de um sujeito na política. Dizia Badiou: “Penso que uma política, ou melhor, um certo sujeito político, ativo, concreto, é, na verdade, um nó de três elementos. Há, por um lado, a situação de massa, a situação popular, tal como existe num determinado momento. Há a necessidade de concentração e organização das ideias e das práticas, e depois, por outro lado, a questão do Estado”.

Caberia ao sujeito político tornar real, pela articulação de massas, o encurtamento da distância entre esses elementos e o Estado. Entre nós seria tarefa imperativa a modernização do Estado, que inclui a democratização. O diagnóstico era de que “o Estado aqui se encontra confundido com muitas outras coisas. Ele se confunde com os interesses econômicos, ele se deixa misturar com a corrupção, na medida em que o seu aparelho repressor policial está confundido com os bandidos. Tudo indica que o Estado está um pouco em decomposição.”

Três décadas atrás, o pensador parecia olhar como vidente para uma bola de cristal. Ele não se referia à estabilização econômica (no ano seguinte, viria o Plano Real), mas estritamente à política, que exigiria uma “profunda transformação, subjetiva e objetiva, do Estado”. Nada aconteceu nos governos da pós-ditadura, e se cumpriram as piores predicações quanto à decomposição do Estado, como atestam os escândalos de corrupção, também a mafialização, até o ponto da atual indistinção, em certos casos, entre aparelho repressor e bandidagem. Até mesmo o golpismo soa a escritório do crime.

No entanto, houve etapas de confiança popular num sujeito político (PT/Lula) próximo ao que pensavam as pessoas. Política verdadeira (“politics” e não “policy”, como distingue o inglês) é um pensamento prático. O partido eleito, entretanto, é hoje um Narciso nos espelhos palacianos, longe da linguagem e do sentimento comuns. Ainda que bem-vindo, o assistencialismo parece ter esgotado seu apelo político. Se a articulação acenava, no passado, com mudanças de estrutura, hoje é manutenção do status quo brasiliense, seduzindo o Centrão (“ministra bonita”, diz Lula) e evitando sangria desatada entre a militância narcisista, antigos companheiros. Nada

de povo, nem de esquerda, política é apenas grife.


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