18 mar 2025, ter

As armadilhas do aparente consenso em torno de ‘Ainda Estou Aqui’ – 01/02/2025 – Alexandra Moraes – Ombudsman

Os jornais, a Folha em especial, devem ser o espaço do contraditório. Se não por princípios, por sobrevivência. Parece mais interessante, porém, que o sejam por princípios.

A Folha tem o contraditório entre seus princípios editoriais. O jornal “declara compromisso” com o cultivo da “pluralidade na composição da Redação e no conteúdo veiculado pelo jornal, seja ao divulgar um amplo espectro de opiniões de diferentes atores sociais, seja ao focalizar mais de um ângulo da notícia”. Além de praticá-lo, é preciso mostrá-lo.

A ideia elementar de que toda história deve ser contada de mais de um ponto de vista vem encontrando dificuldade em se consolidar num caso específico e aparentemente banal: o do oba-oba ao redor do filme “Ainda Estou Aqui”.

A produção, não resta dúvida, coleciona grandes feitos que devem ser bem noticiados: amealha espectadores, ganha prêmios como o Globo de Ouro para Fernanda Torres e indicações ao Oscar, conquista críticos, toca em feridas coletivas a partir de um drama particular.

Como toda obra, porém, ela acaba submetida a avaliações. Na Folha, a ovação prevaleceu. O jornal também demorou a narrar a ciranda de cancelamentos contra quem quer que emitisse críticas negativas ao filme nas redes sociais. Não foi por falta de aviso: ainda em novembro, a colunista Mariliz Pereira Jorge havia alertado sobre o fenômeno.

Um caso que se tornou emblemático foi o do sociólogo e youtuber Thiago Torres, que usa nas redes o apelido Chavoso da USP. Com mais de 420 mil seguidores na plataforma de vídeos, compartilhou a perspectiva de alguém a quem a obra não havia emocionado.

As reações ao vídeo viraram linchamento virtual. O nível de animosidade na discussão poderia por si só ter sido objeto de apuração. Mas custou a virar assunto no jornal, que noticiou o fenômeno apenas nesta semana, depois dos ataques em massa ao Le Monde por sua crítica negativa ao filme, à atriz Karla Sofía Gascón, concorrente de Fernanda Torres no Oscar, e a qualquer um que fosse visto como potencial puxador do tapete vermelho virtualmente estendido para o filme.

Com a demora e o desequilíbrio, o jornal perde a oportunidade de estimular o debate em vez de se acomodar na arquibancada da torcida. Não se trata meramente de “detonar” o filme (foi usando esse verbo que a Folha definiu o que fez o Le Monde), mas de discutir nuances e pontos de vista, de abrir espaço para interpretações e leituras que desafiem consensos.

Outros produtores de conteúdo que criticaram o filme também foram hostilizados. Thiago Guimarães, do canal OraThiago (143 mil seguidores no YouTube), relata com bom humor que comentaristas revoltados com suas observações sugeriram que ele “se churrascasse”, em referência a uma das expressões usadas nas redes para substituir “suicídio”.

Apesar de elogios ao filme em sua avaliação feita na plataforma Letterboxd, ele conta que o estopim para os ataques foi o fato de ter dado nota três ao filme. Três de um máximo de cinco.

Em comum, essas críticas chamam ao centro do debate feridas sociais que não somem com boas intenções. Nas reações a elas, sobressai a ideia de que o filme é apenas a história de uma família —e que portanto não teria espaço para elaborações mais profundas sobre racismo ou manutenção da brutalidade do Estado contra grupos sociais específicos (o que a própria história da protagonista parece desafiar).

Essa discussão era uma das que poderiam ter tido lugar amplo e controverso no jornal. Mas ele a entrega de bandeja às plataformas digitais —que em outras oportunidades já levaram embora parte da receita com anúncios.

Houve espaço, na Folha, para críticas abertamente negativas através de personagens caricatos (como em “Mario Frias diz que ‘Ainda Estou Aqui’ é ‘peça de propaganda e desinformação comunista’). O dissenso saudável, porém, ficou mais apagado.

As avaliações menos condescendentes são poucas e pouco exploradas (o crítico Inácio Araujo, que também deu três estrelas à produção, e o colunista Gustavo Alonso fizeram as honras da casa), frequentemente com títulos pouco convidativos.

Coube ao blog Sons da Perifa oferecer ao leitor algo das ideias que causavam escândalo nas redes. Mas o texto foi ao ar em 30 de dezembro, já entre os fogos do Réveillon.

A discordância saudável deve ser natural para mercadores de ideias como são os sites noticiosos e jornais, mas requer bem mais do que certezas opostas. Como dizia o verso de abertura da outrora popular “Dança do Créu” (2009), tem que ter disposição.


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *