16 mar 2025, dom

As últimas trocas de mensagens das vítimas da Covid – 16/03/2025 – Equilíbrio e Saúde

Se você soubesse que aquelas seriam as últimas palavras que trocariam, o que diria? Eu te amo, talvez? Confessaria algo, daria um conselho sábio?

Acontece que nenhum deles achava que ia morrer. A princípio essas vítimas da Covid-19 não desconfiavam que nunca mais falariam com as pessoas que amavam.

Para quem ficou, a comunicação interrompida de súbito, sem a chance de uma despedida mais elaborada, é uma memória agridoce da pandemia que deixou ao menos 715 mil mortos no Brasil desde seu início, que completou cinco anos na última terça (11).

Anderson Mata, 43, não sabe se seu irmão mais velho leu a mensagem derradeira que lhe enviou pelo WhatsApp. “Oie! Tá com celular aí?”

Se estava, jamais respondeu. Àquela altura Sandro, oito anos mais velho, bancário, casado e pai de um filho de três anos, já estava na UTI após uma piora na infecção.

“Ele tinha acabado de começar essa família”, lembra o professor de teoria da literatura na Universidade de Brasília. Não foi o primeiro da família a adoecer. Um tio septuagenário, padrinho de Sandro e irmão da mãe deles, morreu dias antes. A mãe tomou a primeira dose da vacina contra o coronavírus no dia seguinte.

Os irmãos dividiram por anos uma beliche no apartamento dos pais e também gostos culturais diversos. “Eu sabia desde muito criança, de cor, todas as músicas da Legião Urbana, dos Paralamas do Sucesso, dos Titãs. Tudo por influência dele, que cantava e pedia que eu fosse uma segunda voz.”

Sandro admitiu estar “morrendo de medo” após a morte do tio. Também pediu que o irmão mandasse um carregador de celular no hospital, relatou sintomas e chegou a dizer que a dor no corpo “estava bem melhor”, inclusive o apetite melhorara. Isso na véspera de ir para a UTI. Morreu uma semana depois.

Naquele mesmo 2021, a publicitária e escritora Suzana Machado, 49, postou numa rede social o print da última conversa de vídeo que teve com o pai. “Ele passa a maior parte do tempo lendo sozinho em seu escritório. Não saiu de casa mas, de alguma forma, a Covid entrou lá na semana em que tomaria sua terceira dose [do imunizante], e ele, agora, está intubado num hospital.”

Ainda apostava num desfecho positivo. “Meu pai não saiu de casa, mas vai sair dessa porque ainda tem muitos sorrisos pra dar por aqui e porque ele, sim, tem histórico de atleta”, disse num chiste com uma fala do então presidente Jair Bolsonaro (PL), que minimizou a Covid-19, chamando-a de “gripezinha” para quem tivesse o tal passado atlético.

Seu pai não tinha o costume de enviar mensagens por celular, daí recorrer ao vídeo. Quando muito, escrevia recadinhos no papel, que a mãe de Suzana fotografava e enviava pelo WhatsApp. Coisas como: “Cerveja Beck’s no [mercado] Zona Sul a R$ 2,99”.

Também ele sucumbiu à Covid.

A curadora e psicanalista Jéssica Balbino, 39, perdeu a amiga Ivone. Ela tinha 40 anos e 70% do pulmão comprometido pelo vírus. Quem lhe contou foi o marido dela, que no fim respondia as mensagens que a mulher, já inconsciente, recebia no celular.

Balbino acompanhou o desenrolar da doença. Em trocas por áudio, Ivone dizia se sentir como se tivessem “passado um trator 20 vezes” sobre seu corpo. “O pior é a hora que você tosse, sabe? Você não aguenta a dor. Aí te dá umas tonturas que, se você não estiver deitada, não aguenta, você cai.”

De modo geral, ela oscilava entre se sentir melhor e registrar dores e cansaço. Deu “Glória a Deus” quando a amiga disse que enviaria um remédio e soro fisiológico. Avisou depois que estava no hospital, “mas tem que esperar vaga, tá tudo ocupado”.

Quando Nilson, o marido, assumiu seu WhatsApp, foi para dizer que a esposa havia sido transferida para o setor de tratamento intensivo. Jéssica disse que tudo ficaria bem, e ele respondeu: “Se Deus quiser”. Ivone deixou quatro filhos e dois netos.

O advogado Eric Pestre, 48, lembra do pai pedindo que não fosse até sua casa porque estava “com um febrão, gripão”, melhor não arriscar. Já tinha tomado uma dose de imunizante, então estava mais confiante, apesar do esquema vacinal incompleto. “Falou assim: bom, pelo menos já sei o seguinte, posso ficar doente, mas pelo menos disso eu não morrerei.”

Victor, o pai, relatava certo tédio com a internação. Dizia que “a noite é sempre chata, sem fim”, que a cama não era confortável. O filho falou maravilhas sobre o Kindle, e ele confessou ter “uma pilha de livros iniciados e a iniciar”. Prometeu experimentar o dispositivo para leitura.

Também contou estar entrando “homeopaticamente no celular e escolhendo com cuidado o que quero ou não ler”, o que achava ótimo. “Sair um pouco do ar está me fazendo bem!!!!”

Victor parecia bem disposto para seu quadro. A saturação de oxigênio, indicativo para a gravidade do vírus, chegou a 99%, um marco excelente. Mas a saúde declinou por fim.

A mãe da produtora Renata Motta, 46, já estava sedada quando ela e a irmã ligaram para outra irmã, que estava a cinco horas de São Paulo, por videochamada. “Ela não respondia, estava com olhinho fechado, quietinha ali. Mas juro para você, tenho certeza absoluta de que ouviu tudo, e acho isso um privilégio.”

Para o psicanalista Christian Dunker, autor de “Lutos Finitos e Infinitos”, a pandemia provocou fenômeno similar àquele de um pós-guerra ou estresse pós-traumático. Depois de perdas em série, e de uma sensação iminente de catástrofe, “vem um período em que a gente parece que quer esquecer, não quer falar mais daquilo, o tema vira aversivo”, diz.

“É como se a gente tivesse que, por alguma razão de luto, interromper o processo e dizer ‘agora acabou’. Mas, justamente, essa interrupção tem efeitos traumáticos em geral. Acaba gerando efeitos de agressividade, de inquietude.”

O luto que Dunker chama de “mal encaminhado”, sem os devidos ritos fúnebres, dificultou a superação. “É como se aquilo estivesse ainda em ‘acontecência’, como se não tivesse sido propriamente reconhecido, tramitado, aceito em toda a sua profundidade. O luto é um processo de fato coletivo, que envolve cerimônias.”

O psicólogo Clayton Moleiro, pesquisador de um grupo de estudos sobre a morte no Labô (Laboratório de Política, Comportamento e Mídia), da PUC-SP, aponta que, se a pandemia nos privou desses rituais de despedida, “trocas de mensagens, fotos, vídeos e áudios podem compor o repertório de elaboração da perda”.

Já ouviu no consultório que “as memórias tecnológicas ajudam em momentos de saudade, enquanto outros pacientes preferem evitar”. E isso não tem a ver com esquecer, reforça Moleiro, “mas talvez com lembrar de outras formas”.

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