21 mar 2025, sex

Como Albuquerque Foundation une peças de porcelana antiga – 20/03/2025 – Ilustrada

Ao traçar uma nova rota ligando Portugal às Índias por via marítima, em 1492, o navegador Vasco da Gama inaugurou também um novo comércio, o da porcelana chinesa.

Os europeus já conheciam e admiravam as peças concebidas de acordo com uma técnica até então inacessível aos ocidentais —algumas poucas vinham pela rota da seda, em lombo de burro—, mas foram os navios que possibilitaram pela primeira vez uma importação em larga escala.

Durante o século 16, os portugueses dominaram o comércio de porcelana. Só perderam a hegemonia no século seguinte, quando os holandeses, seguidos dos ingleses, roubaram dos lusitanos o posto de soberanos dos mares.

Quatro séculos depois, numa quinta no município de Sintra, área metropolitana de Lisboa, acaba de ser inaugurado um museu com um dos maiores acervos de porcelana do mundo. Ele reúne as cerca de 2.600 peças colecionadas ao longo da vida por Renato de Albuquerque, empresário brasileiro da área de construção civil.

“Faz o maior sentido abrir algo assim em Portugal”, diz Mariana Teixeira de Carvalho, neta do colecionador e presidente do conselho da Albuquerque Foundation, nome com o qual o novo museu foi batizado. “Além de toda a questão histórica, Portugal está num momento de internacionalização, em que passou a fazer parte do circuito mundial de arte.”

A exposição de abertura reúne cerca de 10% do acervo, com ênfase em peças produzidas entre os séculos 17 e 18, em que reinavam na China as dinastias Ming e Qing.

Teixeira de Carvalho quer que a Albuquerque Foundation se torne um ponto de peregrinação para os apreciadores de porcelana, assim como o Museu Britânico —que abriga desde 2006, em Londres, o acervo de Sir Percival David, um dos maiores colecionadores de arte chinesa em todos os tempos— e o palácio Zwinger, em Dresden —foi na cidade alemã que Frederico Augusto 1º, o Forte, reuniu artistas e cientistas para desvendar, no século 18, o segredo da porcelana chinesa.

O soberano germânico recebeu o codinome por ser capaz de dobrar ferraduras usando apenas uma das mãos e por ser amante de esportes bárbaros e sangrentos. Sua maior paixão, no entanto, eram mesmo as delicadas peças vindas do oriente. Foi a partir da escola de Dresden que a porcelana de alto padrão deixou de ser monopólio da China e passou a ser fabricada também na Europa.

“Não queremos que a Albuquerque Foundation seja apenas o abrigo de uma arte que teve seu auge no passado”, diz Carvalho. “A ideia é que as exposições provoquem uma reflexão sobre o presente e também dialoguem com os ceramistas do universo da arte contemporânea.” A diretora de relações institucionais da fundação, Mônica Novaes Esmanhotto, completa: “Através da porcelana, podemos falar de colonialismo, imperialismo e globalização, temas extremamente atuais”.

A exposição inaugural, cuja curadora é a americana Becky MacGuire —especialista em arte chinesa que trabalhou por muito tempo na Christie’s de Nova York– intitula-se “Connections” e pretende cruzar olhares ocidentais e orientais.

A ênfase da mostra recai sobre um dos pontos fortes da coleção: a cerâmica de exportação, feita na China sob encomenda dos europeus nos séculos 17 e 18. Artistas anônimos do oriente eram instados a retratar um ocidente que não conheciam, o que leva a interpretações criativas e surpreendentes.

Uma poncheira de porcelana, por exemplo, retrata os jardins de Vauxhall, em Londres –mas o desenho transporta para o contexto britânico construções típicas da arquitetura chinesa. Em outra peça, músicos tocam instrumentos do barroco europeu como flauta doce e alaúde. Eles usam perucas no estilo de George Friedrich Haendel e Johann Sebastian Bach, mas suas feições apresentam traços orientais. Nas cenas religiosas, figuras da cristandade aparecem em meio a paisagens asiáticas.

Alguns desenhos trazem hábitos comuns à nobreza chinesa e à europeia, como as cenas de caça. Há uma grande placa decorativa da era Qing, no século 16, em que cavaleiros armados com arcos, flechas, espadas e escudos correm atrás de animais, num painel que lembra um quadro de batalha ocidental. Data da mesma época um prato raro em que nobres chineses patinam no gelo, inspirado numa obra do artista holandês Cornelius Dusart (1660-1704).

Na Albuquerque Foundation existe também um espaço para exposições de artistas contemporâneos que se dedicam à prática da cerâmica e dialogam com o universo da porcelana. O escolhido para a mostra inaugural foi o afro-americano Theaster Gates.

Natural de Chicago, Gates cruza tradições de três continentes. A exposição mescla peças de sua autoria com obras do acervo escolhidas pelo artista. Gates define a vertente de sua obra exposta na Albuquerque Foundation como “afro-mingei”, referindo-se a uma das formas da arte popular utilitária japonesa.

As exposições inaugurais são ricas em informações sobre a procedência e peculiaridades das peças, proporcionando ao espectador uma espécie de viagem pelo mundo da porcelana. Segundo Carvalho, grande parte da motivação do avô, hoje com 97 anos, tem esse aspecto lúdico.

Quando comprou suas primeiras peças de porcelana, Renato de Albuquerque notou que elas contavam histórias e abriam portas para diferentes mundos e épocas. “Existe todo um universo, no mundo da arte, que se conecta em torno da porcelana”, diz a diretora Mônica Novaes Esmanhotto.

A Albuquerque Foundation se localiza na Quinta de São João, em propriedade doada pela família Albuquerque, que está financiando o projeto do museu num primeiro momento. “A ideia, no entanto, é fazer a partir de agora uma captação pesada, pois temos objetivos ambiciosos”, diz Teixeira de Carvalho.

O projeto da fundação prevê residências artísticas centradas na área de cerâmica e até projetos acadêmicos de pesquisa. Além da coleção, Renato de Albuquerque reuniu uma biblioteca de 1.600 livros sobre o tema. “A coleção é o trabalho de uma vida de meu avô, e queremos que seja também o legado de nossa família”, afirma a presidente do conselho da fundação.

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