18 mar 2025, ter

Como Elis Regina, que faria 80 anos, reinventou a MPB – 17/03/2025 – Celebridades

Bled (Eslovênia)


BBC News Brasil

O primeiro disco de Elis Regina (1945-1982), lançado em 1961 pela gravadora Continental, foi um grande fracasso.

Tinha o título de “Viva a Brotolândia” e trazia uma coletânea de rocks ingênuos, numa tentativa de transformar aquela então desconhecida gauchinha de apenas 15 anos em uma sucessora da consagrada Celly Campello (1942-2003).

Mas quem na época comprou aquele disco -talvez por mera curiosidade- e chegou em casa para ouvi-lo deparou-se com uma mensagem na primeira faixa que podia funcionar como uma espécie de prenúncio de quem seria aquela mulher para a música brasileira.

A música Dá Sorte, composta por Eleu Salvador (1932-2007), diz: “Creio no supremo poder, gosto de quem gosta de mim, serei tudo que quero ser”.

Nesta segunda-feira, 17 de março de 2025, Elis completaria 80 anos.

Com a vida abreviada por uma noite de overdose quando tinha apenas 36 anos, Elis Regina chegou ao ápice da MPB -uma MPB que ela ajudou a definir.

Segundo especialistas em música entrevistados pela BBC News Brasil, a consagração fazia parte dos planos de Elis, que traçou seu próprio caminho de forma autêntica.

“Ela foi muito solitária, mas sempre soube muito o que queria. Antes, sabia o que não queria. Depois soube o que queria”, comenta à BBC News Brasil o jornalista e escritor Julio Maria, autor da biografia Elis Regina: Nada Será Como Antes, lançada originalmente em 2015 mas que acaba de ganhar uma reedição revista e ampliada.

“E não fez parte de nenhuma turma. Negou-se a ser da turma da Celly Campello, não foi da Jovem Guarda, não foi do Tropicalismo, não foi do samba, não foi do rock, não foi da bossa nova… Solitariamente, fez suas revoluções da voz e da música brasileira sabendo muito bem o que queria.”

Para o jornalista e crítico musical Jotabê Medeiros, Elis deixou um legado que vai além da qualidade e “preparou a própria eternidade”.

“Elis não quis ser Janis Joplin, não quis ser Ella Fitzgerald, não quis ser Billie Holiday. Ela quis mais, e conseguiu”, aponta Medeiros.

O estrelato foi consequência de uma busca pessoal dela, acrescenta o historiador e jornalista Paulo César de Araújo, especializado em MPB.

“O fato é que ela procurava um lugar na grande constelação da Música Popular Brasileira. E brigou por isso”, diz ele à BBC News Brasil.

Danilo Casaletti, jornalista e pesquisador musical, reforça que Elis “sempre soube onde pisar”.

“Quando saiu de Porto Alegre, já em busca de ser uma artista com personalidade, e não apenas uma cópia fabricada, ela foi parar diretamente no cenário efervescente das boates do Rio de Janeiro e de São Paulo, nas quais se apresentavam músicos modernos, que misturavam samba, jazz e outras bossas”, complementa.

“Por isso, ela nasceu para a vida artística já como uma cantora moderna.”

Mas, então, como foi o “nascimento” dessa cantora? Vamos voltar a Porto Alegre.

De Porto Alegre para o Beco das Garrafas

Elis nasceu em Porto Alegre em 17 de março de 1945 e, desde criança, demonstrava talento musical.

Aos sete, foi levada pela mãe para participar de um programa de rádio. A partir de 1958, aos 13 anos, passou a atuar profissionalmente, contratada pela principal emissora do Rio Grande do Sul: por isso, passou a ser chamada de “a estrelinha da Rádio Gaúcha”.

Na mesma época, também começou a se apresentar em casas noturnas de Porto Alegre.

Em 1961, foi descoberta por um funcionário do selo Continental da gravadora brasileira GEL. Foi levada ao Rio e gravou seus dois primeiros discos: “Viva a Brotolândia”, que sairia naquele mesmo ano, e “Poema de Amor”.

Dois fracassos. O primeiro foi resultado de uma tentativa de transformar Elis na sucessora de Celly Campello, cantora que explodiu nacionalmente em 1959 e se tornou a voz e o rosto das pueris canções do rock and roll que nascia no país.

O segundo álbum foi uma repaginada que tentou fazer de Elis a voz dos boleros.

Na contracapa do álbum de estreia, o produtor Carlos Imperial (1935-1992) escreveu que Elis era “um broto cantando música de broto para você, broto, ouvir e dançar”.

“Elis Regina é um broto, não só de idade, como de espírito também”, completou ele, usando gíria da época para “jovem” ou “namorado(a)”.

O contrato seguinte foi com a gravadora CBS, por onde saíram seus dois discos seguintes, ambos em 1963. Ali, testou-se uma Elis cantora de sambas popularescos, sem muita relevância.

Decepcionada pelos quatro primeiros discos -obras que ela praticamente renegaria ao longo da vida-, Elis resignou-se à vida de cantora de rádio e casas noturnas de Porto Alegre.

Foi quando um produtor da Phillips, então a maior gravadora estabelecida no país, assistiu a uma de suas apresentações e gostou muito. Deixou o cartão e a recomendação de que ela o procurasse em breve.

Em conversa com a família, Elis decidiu se mudar para o Rio, então o centro da indústria fonográfica do país. Chegou à Cidade Maravilhosa exatamente no dia que ficaria marcado pelo golpe militar: 31 de março de 1964.

Logo estava trabalhando na TV Rio. Esta aparição televisiva acabou abrindo portas: no mesmo ano, Elis começou a fazer apresentações no Beco das Garrafas, uma travessa de Copacabana que concentrava as casas noturnas da época.

Segundo Araújo, na véspera dessa fase, Elis estava “meio perdida, vagando de um lado para o outro tentando encontrar um espaço”.

“Um fator que vai contribuir para a grande virada na carreira foi o Beco das Garrafas. […] Ela vai travar contato com os grandes músicos brasileiros, que se apresentavam lá. Isso certamente mexeu com a sensibilidade dela”, afirma o historiador e jornalista.

“Ela estabeleceu contatos, fez amizades com pessoas que a ajudaram inclusive a entender melhor o que estava acontecendo no Brasil.”

Em paralelo, também passou a se apresentar em São Paulo, principalmente na boate Djalma’s, que ficava na Praça Roosevelt.

Naquela época, esta era a região da bossa nova em São Paulo, conforme caracterizou o musicólogo Zuza Homem de Mello (1933-2020) ao Jornal da Tarde.

No ano seguinte, Elis decidiu se mudar para a capital paulista.

O papel da TV na carreira, rumo à consagração

Em São Paulo, ela acabou se aproximando da TV Record, emissora que começava a se destacar pela qualidade da programação musical.

Elis coapresentou o programa O Fino da Bossa ao lado de Jair Rodrigues (1939-2014) e finalmente ganhou projeção nacional.

No mesmo ano, ganhou o I Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela TV Excelsior -defendendo a música Arrastão, composição de Edu Lobo e Vinícius de Moraes (1913-1980).

Para Araújo, a TV ajudou a moldar o sucesso de Elis.

“Enquanto alguns cantores se perdem [por não se adaptar ao vídeo], com a Elis foi o contrário: ela se adequou bem à televisão, cresceu na televisão”, explica.

“Isso contribuiu para que, a partir da metade dos anos 1960, Elis se tornasse a mais poderosa e influente cantora do Brasil, comandando um programa de audiência e liderando o movimento musical brasileiro a partir da TV Record.”

De 1965, seu quinto álbum, “Samba – Eu Canto Assim”, trazia pérolas como Reza, de Ruy Guerra e Edu Lobo, e uma faixa com três composições de Baden Powell (1937-2000) e Vinícius de Moraes. Dali em diante, era a Elis que fez história.

Araújo lembra que esse disco teve “grande repercussão”: “Revelou uma cantora moderna, cantando sambas modernos e com temática social.”

Os anos 1970 marcaram sua maturidade técnica e vocal – e ela continuou se esmerando na escolha meticulosa dos repertórios, uma de suas marcas.

Em 1974, lançou com Tom Jobim (1927-1994) o álbum “Elis & Tom”, aclamado como um dos mais importantes da história musical brasileira.

Para os críticos, é notório que houve ali uma evolução, embora a essência de sua voz já estivesse presente no início da carreira.

“A primeira fase, muito jovem e num mundo masculino hegemônico, foi traiçoeira. O primeiro disco foi tutelado por Carlos Imperial, um equívoco de repertório, de posicionamento”, ressalta Medeiros.

“Mas isso é normal quando se é muito jovem e estamos buscando um lugar ao sol. Ela soube sacudir a poeira, retomar as rédeas da carreira e da vida”, completa, dizendo que Elis era uma “mulher em avançado processo de emancipação pessoal”.

Para Araújo, o fracasso dos primeiros discos forçou Elis a buscar sua identidade como artista: “A mudança de cantora pop estilo Celly Campello para grande estrela da MPB aconteceu de forma gradual.”

E essa identidade era múltipla, acrescenta Casaletti.

“Elis foi se lapidando. Transformava-se a cada disco. Ou, dentro de um mesmo disco ou show, era várias”, destaca o jornalista e pesquisador musical.

Engajamento político

Também desaflorou com o passar dos anos uma Elis engajada politicamente.

Em 1967, ela liderou uma passeata em São Paulo que ficou conhecida como Marcha contra a Guitarra Elétrica, um protesto de artistas -muitos deles tropicalistas- contra a “invasão da música internacional”.

Mais tarde, ela própria mudaria de ideia e, assim como os artistas tropicalistas, passaria a aceitar a inclusão de instrumentos como a guitarra.

“Ela estava comprometida com essa ideia de música brasileira e por isso teve uma postura de rejeição ao rock, resultando nesse famigerado episódio da passeata”, afirma Araújo, apontando que depois, já no final dos anos 1960, Elis cantou músicas de rock de Roberto Carlos e dos Beatles.

“Quando algum jornalista vinha cobrar uma certa coerência, ela costumava responder simplificando: ‘Mudei, dá licença'”, conta o historiador.

Para ele, a abertura para mudanças resultou em uma “Elis completamente livre, leve e solta” para gravar os grandes discos na década de 1970, “dentro da diversidade de estilos e de músicas que caracteriza a carreira dela”.

Sobre a ditadura militar, Elis se posicionou contra o regime não somente nas letras das músicas que escolhia para seu repertório.

Em uma entrevista concedida durante turnê na Europa em 1969, ela afirmou que o Brasil “era governado por gorilas” -e logo desculpou-se dizendo que não queria “ofender os gorilas”.

Apesar de malvista pelo regime, nunca chegou a ser presa.

Anos mais tarde, tornou-se um hino pela anistia a interpretação de Elis de “O Bêbado e A Equilibrista”, célebre canção de João Bosco e Aldir Blanc (1946-2020) que integrou o álbum “Essa Mulher”, de 1979.

Ela também engajou-se na luta pelos direitos autorais, participando de reuniões da classe artística em Brasília.

Em 1981, filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT), que tinha sido fundado um ano antes.

Para Araújo, Elis ajudou a definir a MPB como “moderna e comprometida com a realidade social do Brasil”.

“Ela foi protagonista desse processo, firmando-se como a grande voz feminina da MPB”, salienta.

“Elis gravava compositores comprometidos com essa luta. Por isso, ficou no imaginário coletivo como a cantora da resistência, uma espécie de heroína da cultura brasileira.”

Talento em escolher parceiros musicais e repertório

Na vida pessoal, Elis cercou-se de amigos do meio musical.

Vinícius de Moraes deu a ela o apelido de “pimentinha”, que se tornou uma de suas marcas.

Cauby Peixoto (1931-2016), de quem era fã desde a infância, certa vez chamou-a para morar com ele, tamanha a alegria que tinha por conviver com ela. Segundo conta Julio Maria em seu livro, ela ficou de pensar.

De Clara Nunes (1942-1983), ela acabou se aproximando por conta da amizade profissional que tinha com o compositor Paulo César Pinheiro, que era casado com a cantora.

Ficaram amigas de fazerem compras juntas e frequentarem os mesmos centros espíritas.

A lista de nomes que ascenderam graças a suas interpretações é enorme e passa por Aldir Blanc (1946-2020), Belchior (1946-2017), Egberto Gismonti, Guarabyra, Ivan Lins, João Bosco, Lô Borges, Milton Nascimento, Raimundo Fagner e Zé Rodrix (1947-2009).

“Quando ela grava novos compositores, então desconhecidos, ela revela faro para o novo e também uma aguçada percepção do futuro, do que está por vir”, pontua Medeiros.

Aliás, sua capacidade de selecionar o repertório, pinçando pérolas, era acima da média, dizem os entrevistados.

“Receber 50, 60 músicas para ouvir e pinçar uma a uma e dali montar um disco. Esse talento que ela tinha… Vários cantores se perdem por falta disso”, comenta Araújo.

Segundo Julio Maria, a cantora só gravou “o que quis, sem aceitar interferência em seu repertório”.

Danilo Casaletti endossa que ela era “muito criteriosa” nisso, “tanto no apuro estético, quanto na intenção do que ela queria imprimir, na mensagem propriamente dita.”

“Elis segue relevante pela mensagem que ela passa”, diz Casaletti.

Na vida amorosa, a música também lhe deu companheiros -e filhos músicos.

A cantora foi casada duas vezes. Primeiro com o músico Ronaldo Bôscoli (1928-1994), com quem teve um filho, o produtor musical e empresário João Marcello Bôscoli.

Do relacionamento seguinte, com o pianista César Camargo Mariano, nasceram os músicos Pedro Camargo Mariano e Maria Rita.

Ela morreu aos 36 anos, em 19 de janeiro de 1982, em seu apartamento em São Paulo.

De acordo com o laudo médico, foi vítima de overdose -tecnicamente, morreu por “intoxicação exógena causada por agente químico”. Ela havia misturado cocaína com bebida alcoólica.

Intensidade e drama na voz

Como legado, Elis nada menos do que transformou a forma de cantar no Brasil e a própria MPB, dizem os entrevistados.

“Chegou em um momento em que todo mundo cantava para dentro”, comenta Julio Maria, referindo-se ao estilo da bossa nova em comparação ao da era do rádio.

“Algumas pessoas entenderam errado e começaram a cantar mal mesmo. Só que a Elis, ela chegou e cantou para fora de novo. Fez de cara uma transformação na ideia do canto brasileiro.”

O biógrafo também destaca que ela contribuiu para elevar o patamar das composições.

“Para ser gravado pela Elis, era preciso ter uma qualidade harmônica, melódica e poética muito grande. E as pessoas passaram a investir nisso para serem gravados pela Elis. Ela se tornou um filtro”, complementa.

Para Julio Maria, o “para fora” da Elis tinha uma diferença: a interpretação.

“Havia entrega de pensamento, intensidade, drama no canto dela. Ela pensava a palavra que cantava, sentia o que cantava”, analisa.

Casaletti reforça esta qualidade: Elis sabia como colocar “emoção em suas interpretações”, diz.

“Nada em Elis era em vão ou fora de lugar”, acrescenta o jornalista. “Ela sabia o que queria a cada vez em que cantava uma música, fosse a primeira ou a centésima vez em que estava com aquela canção. Ela era tão verdadeira nesse sentido que a única coisa que eu acho que Elis não fazia direito era dublar. Para ela, tinha que ser ao vivo. Sempre.”

O crítico Medeiros salienta que o reconhecimento de Elis ultrapassa o Brasil.

“Grande parte das cantoras estrangeiras que eu pude entrevistar, algumas delas divas do jazz, apontaram Elis como uma joia rara. De Madeleine Peyroux a Stacey Kent, de Esperanza Spalding a Cassandra Wilson: todas ouviram Elis e reconheceram nela a maestria de uma voz planetária, maior do que as fronteiras, maior do que os rótulos”, afirma.

Este texto foi originalmente publicado aqui.

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