Ao contar uma história de resistência à ditadura militar, um filme brasileiro chegou à prestigiada e quase intangível corrida do Oscar. O ano era 1998, e não 2025. Fernanda Torres não parecia abalada com a possibilidade de derrota de “O Que É Isso, Companheiro?”, na categoria de filme internacional, o que se concretizaria um mês depois em Los Angeles. Ela defendia que aquela indicação era, acima de tudo, uma importante vitrine para o cinema nacional.
“O Brasil ama se ver, mas faliu como indústria. Sem ter seu país produzindo cinema, sozinho você não é ninguém”, dizia a atriz, no centro do Roda Viva, aos 33 anos. Sua satisfação era ver um filme brasileiro em cartaz em Nova York e sobreviver do que gostava. “Quando ganhei Cannes, meu tio Paulo falou ‘um dia quero te ver no Oscar’. O tio Paulo não tem ideia da ralação e a sorte que é. O Oscar não vai rolar nunca”, disse, com seu bom humor costumeiro.
Agora, 26 anos depois, Torres está mais perto do que um brasileiro jamais esteve da cobiçada estatueta dourada. “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, concorre a melhor filme e a melhor filme internacional, e ela tem chances maiores do que sua mãe, Fernanda Montenegro, teve há 25 anos, quando concorreu na categoria de melhor atriz.
Mas certas coisas não mudam. Com carisma inabalável, Torres vem derramando seu senso de humor afiado nas numerosas entrevistas a americanos, enquanto reserva suas palavras exclusivamente à história de Eunice Paiva, sua personagem, e a explicações sobre a cultura brasileira. É como se estivesse determinada a usar o momento de estrelato para falar de algo que considera maior do que si própria.
Disse em eventos nos Estados Unidos que os americanos apoiaram a ditadura militar no Brasil, e que as novelas são um importante produto cultural porque deram aos brasileiros o gosto de verem a si mesmos nas telas.
“Ela é uma atleta olímpica que está se preparando a vida inteira para essa maratona de apresentar ao mundo uma vida possível para qualquer pessoa. Para mostrar que, se você se interessar por cultura, a vida presta”, diz Daniela Thomas, diretora e amiga de Torres desde a infância —quando seu pai, Ziraldo, viajava junto de Fernando Torres e Fernanda Montenegro e suas crias.
Foi a mesa de jantar da família, numa casa da rua Frei Leandro, na Lagoa, bairro da zona sul carioca, que moldou o caráter de Torres, afirma Thomas. Ali, o alimento durante as refeições era a discussão intelectual do dia, servida pelos pais, ambos atores.
“Fernando era mais engraçado e do abraço afetuoso, e Fernanda era bem mãezona, daquelas que dá as diretrizes. Era uma família de intelectuais meio circenses”, conta Ana Couto, designer e amiga de infância de Torres. As duas estudaram juntas no Souza Lima, na época um colégio construtivista cheio de filhos de artistas e intelectuais.
“Fernanda foi superdisciplinada”, lembra Couto. “Quando íamos na casa dela e fazíamos uma bagunça danada, ela chorava, porque dizia que precisávamos fazer o dever de casa.” Festinhas eram deixadas de lado em prol de hobbies inusitados –aulas de macramê no sol, escultura e pintura.
Aos 13 anos, Torres entrou no Tablado, escola de teatro dedicada à improvisação e trabalho em grupo, por onde passaram nomes como Marieta Severo, Tata Werneck e Pedro Cardoso. A peça era “Um Tango Argentino”, escrita por Maria Clara Machado, e a menina vivia uma dançarina mais velha, que só entrava no final.
Seus pais já eram atores estimados e pediram à então professora da filha, Sura Berditchevsky, para assistir ao ensaio do balcão sobre a plateia, às escondidas. O que era para ser uma visita de incentivo se tornou um evento catártico quando Torres, vestida inteiramente de preto, entrou no palco. Era a cara da mãe e, apesar da semelhança, dominava a cena com agilidade própria e precoce.
Os pais foram às lágrimas. “Eles tinham muito receio de a impedir ou de a induzir à carreira artística”, lembra Berditchevsky. “Ali, aquele momento foi uma surpresa. Eles viram que não era a filha deles, mas uma pessoa que tinha possibilidade.”
“O parto foi cesariana. Quando voltei a mim da anestesia, perguntei se era menino ou menina. Fernando respondeu que era menina, e que o nome dela seria Fernanda. Segundo ele, precisávamos de uma Fernanda verdadeira”, escreveu Fernanda Montenegro, sobre o nascimento da filha, em sua autobiografia. A sugestão bem humorada do pai era uma brincadeira com o fato de o nome de batismo da mulher ser Arlette, e não Fernanda, embora a intenção da homenagem estivesse nas entrelinhas.
Ainda que não se originasse dos pais, a expectativa de que deveria suceder a mãe pairou sobre Torres por anos. Ela chegou a afirmar que se dedicou à escrita, em parte, para seguir um caminho próprio. “Ela nunca achou que teria uma carreira dada. A vida artística era dominante, e o resto era em torno disso”, diz Couto.
Thomas tem outra hipótese de como a atriz cortou o cordão umbilical. “Competir com a mãe seria um disparate, então ela encontrou a saída no humor.” Dessa forma, Torres internalizou dentro e fora das telas e palcos uma ironia própria da comédia sardônica carioca, que marcou a juventude de uma geração que encontrou no humor uma sobrevivência à repressão da ditadura militar.
Sua formação no teatro, afinal, acompanhou os piores anos do regime. Berditchevsky, quando ainda dava aulas a Torres, foi levada pelos militares a depor depois de uma peça ser censurada meia hora antes da sessão de estreia. O pai da atriz a escoltou até a delegacia, para garantir sua soltura.
A convivência diária com companheiros de elenco dos pais incluía nomes como Domingos Oliveira, João Ubaldo Ribeiro e Luís Carlos Miele. No começo dos anos 1980, o ator Cláudio Marzo dava a Torres uma carona quando parou em frente à casa de Walter Lima Júnior para dar um alô. O diretor estava em busca de sua Inocência para o filme que adaptaria o romance do Visconde de Taunay.
“Vi um olho grande, olhando para a minha cara. Era ela”, lembra Lima Júnior, sobre o momento em que encarou a adolescente de 17 anos pela janela do carro. “Inocência”, de 1983, seria o primeiro filme de Torres. Na trama, ela encarnava a menina doente que se apaixonava por seu médico –interpretado por Edson Celulari– no Brasil imperial.
Foi nessa época que ela conheceu e se casou com o jornalista e apresentador Pedro Bial. “Estávamos juntos quando Michael Jackson lançou ‘Thriller’. Foi ela quem me explicou o que aquilo representava. Com Nanda, reaprendi a brincar”, lembra o jornalista, que a acompanhou quando ela fazia Cordélia em “Rei Lear”.
Depois das cenas iniciais, Torres tinha um intervalo de duas horas para voltar no último ato, morta. Era o tempo de o casal ir ao fliperama ou encontrar outros amigos. “Várias vezes, a defunta Cordélia se sacudia de rir no palco. Ela tem humor finíssimo, cruel de tão afiado. Em seus livros, ela apresenta essa que parece ser a melhor chave para entender e sobreviver ao Brasil, a tragicomédia”, diz Bial.
Há quatro décadas, em 1985, faria “A Marvada Carne”, de André Klotzel, e no ano seguinte “Eu Sei que Vou te Amar”, de Arnaldo Jabor, com o qual se tornou a primeira brasileira a vencer o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes, na França —mas não recebeu o troféu pessoalmente, porque estava gravando a novela “Selva de Pedra”.
“Com 15 anos você quer fazer uma novela das oito. Trabalha oito horas por dia, oito meses, dizendo só ‘Cris, Cris, eu te amo’. Aí você descobre que há mais coisas a se viver. No cinema se trabalham ideias, não só as vaidades do ator”, dizia Torres, aos 27 anos, em sua primeira participação no Roda Viva, enquanto fumava um cigarro. Os telespectadores a acusavam, em recados enviados ao programa, de ser “porra louca” por falar palavrões e pediam para que ela depilasse as axilas.
“Mandaram não depilar para a peça. Sou limpinha, tomo banho todo dia e lavo minha calcinha. É tão violento uma mulherzinha com o braço raspado”, ela respondeu, entre risadas. A peça em questão era “The Flash and Crash Days”, de Gerald Thomas, em que ela e sua mãe discutiam, se masturbavam e tentavam se matar.
O espetáculo gerou polêmica pouco tempo depois de Torres ter dado vida ao Orlando do clássico homônimo de Virginia Woolf, na adaptação de Bia Lessa, em que beijava outras mulheres e se apresentava para os aplausos nua.
“Éramos pessoas com desejos artísticos semelhantes, querendo arriscar com trabalhos que não fossem só comerciais”, diz Lessa. “O agradecimento é o ápice do espetáculo, e Orlando apareceu como veio ao mundo, com o peito completamente aberto, sem proteção, que no fundo é um pouco mais síntese do que é o teatro.”
O cinema vivia um momento desanimador depois do fechamento da Embrafilme, estatal que foi a principal produtora e distribuidora de longas nacionais, e Torres se queixava de que os filmes que fazia não eram finalizados por falta de investimento. Desiludida com a TV, passou a trabalhar ainda mais no teatro. “Contrato longo me angustia, parece que estou sendo paga para ficar parada na vida”, dizia, na época.
“Nanda gosta de ação. Na televisão, eles deixavam ela no camarim aguardando horas e horas. Essa era a maior aflição dela. Ela não aguenta ficar parada”, diz Gerald Thomas, que foi casado com Torres por cinco anos. Numa ocasião, quando ela foi visitar o dramaturgo na Áustria e ele não a pôde encontrar no dia de seu aniversário, “ela alugou um carro e saiu pelas ruas tortuosas da Áustria”, ele conta. “Fiquei morrendo de medo de alguma coisa acontecer. Ela não aguenta ficar parada.”
Além de peças conceituais e reflexivas, Torres também se interessava pelo humor escrachado e satírico do grupo de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone, fundado por Regina Casé e Hamilton Vaz Pereira. “Ela era engraçadíssima. Não brigávamos porque tudo acabava em gargalhada. Mas todo palhaço é triste. Ser rejeitada era um enorme problema”, diz Gerald Thomas. “Quando ela via que outra atriz tinha pego o papel de um filme que ela queria fazer, acabava o dia, a semana, o mês.”
Numa entrevista a Bruna Lombardi, na década de 1990, Torres admitia a dificuldade em enfrentar suas frustrações. “A luta entre a mente sã e o buraco é uma constante na minha vida”, afirmou, sorrindo.
A solução para a melancolia parece ter sido não se levar tão a sério. Em 1996, durante a montagem do espetáculo “Cinco Vezes Comédia”, na falta de uma atriz para compor o elenco, Debora Bloch insistiu para que Luiz Fernando Guimarães chamasse Torres.
O convite para “Os Normais” veio pouco depois. Apesar das reticências em trabalhar na televisão, a série escrita por Fernanda Young e Alexandre Machado, sobre um casal que vivia entre tapas e beijos, permitia aos atores uma liberdade criativa não comum nas novelas, com possibilidade de improvisação e alteração do texto.
O sucesso foi absoluto. “As pessoas se identificaram. Rui simbolizava os homens em geral, e Vani, as mulheres”, lembra Guimarães. “Com humor, você alcança o mundo, porque você pode falar de tudo. O comediante, quando fica em silêncio, é melancólico, porque é preciso ter profundidade naquilo que ele faz e, para isso, ele precisa ter as dores do ser humano.”
Na mesma toada de fazer humor com situações cotidianas e tipicamente brasileiras veio “Tapas e Beijos”, em que Torres deu vida a Fátima, uma vendedora de vestidos de noiva que trabalha e mora com a melhor amiga, Sueli, interpretada por Andrea Beltrão. As duas enfrentavam juntas o estresse da labuta, viviam sem dinheiro e se envolviam com cafajestes.
Nas gravações, Torres se entregava por completo à impulsividade de Fátima, depois de passar horas estudando dentro do carro, no caminho até os estúdios da TV Globo, que durava mais de uma hora. Nas brigas com seu par romântico, Armane, vivido por Vladimir Brichta, voavam copos e garrafas, e ele levava vários tapas na cara. “Ela sempre dizia, com aquele autodeboche e autodepreciação magistrais, ‘nunca mais vou fazer um personagem sério na minha vida, não vão mais me levar a sério, acabou para mim'”, lembra Brichta.
A série terminou há dez anos, mas as cenas de Fátima e Sueli são memes até hoje. “Os personagens eram falhos, e havia um olhar crítico em relação a eles. Você ria para expurgar suas falhas e repelir a desonestidade em si mesmo”, afirma o ator.
A facilidade de dominar trejeitos e manias, para Clara Kutner, diretora da série, tem relação com a capacidade de Torres de observar as pessoas ao seu redor, característica inerente aos escritores. Em 2013, a atriz publicou “Fim”, livro que deu origem a uma minissérie homônima, em que destrincha os últimos anos da vida de um grupo de homens de classe média com vícios machistas.
Não por acaso, quando Walter Salles a chamou para “Ainda Estou Aqui”, Torres pensou que era para escrever o roteiro. Os dois já tinham trabalhado juntos três décadas antes, em “Terra Estrangeira”, quando ela descobriu seu ímpeto pela escrita ao reformular alguns diálogos do filme. Mas a ideia de Salles era que ela desse vida à sua protagonista, Eunice Paiva, que precisa criar cinco filhos após o sequestro de seu marido pelos militares.
Quando filmavam uma das cenas do filme na praia, um homem que passava de carro gritou “te amo, eterna Vani!” para Torres. Era quase uma década que ela não fazia um grande papel dramático, e o desafio estava posto à mesa.
“Amor, estava esperando uma hora tranquila para falar com você. Hoje é seu primeiro dia em Los Angeles, rumo ao Oscar”, diz Regina Casé, num áudio enviado a Torres, no início da campanha de “Ainda Estou Aqui” nos Estados Unidos. “Com seu trabalho nesse filme, imagino que você tenha ido a lugares que nunca foi, conhecido emoções que apenas supunha que tinha, sem nunca ter experimentado. Tudo isso é visível.”
Apesar da tragédia, Eunice é austera, e sua dor está nas ausências —de lágrimas e palavras. “Eunice está próxima de Antígona e se dá através da linguagem da tragédia grega. Não é o personagem que vive a catarse, mas o espectador”, diz Amanda Gabriel, preparadora de elenco de “Ainda Estou Aqui”. “É bonito ver uma atriz madura se reinventando para fazer uma personagem que a desafiava no tom de voz, na postura e na forma de reagir.”
Depois de três meses separados, Andrucha Waddington, diretor com quem Torres é casada há 27 anos, está acompanhando a atriz pelas andanças intermináveis pela Europa e pelos Estados Unidos. “Ela tem se colocado nesta jornada com os pés no chão, procurando honrar Eunice Paiva”, diz ele. Nos raros momentos em que fala de si mesma em entrevistas para promover o longa, Torres comemora sua idade e se diz aliviada de ter alcançado tanto sucesso aos 59 anos, porque finalmente está segura na própria pele.
Caros à juventude, a ansiedade e o medo do futuro ficaram para trás, e ela parece obstinada à tarefa de atuar como porta-voz de um momento histórico. “O Brasil é uma ilha continental. O Brasil tem esse complexo de vira-lata e, ao mesmo tempo, tem pena do mundo não saber do que a gente sabe”, afirmou, sobre a exaltação coletiva diante do reconhecimento de “Ainda Estou Aqui” pelos estrangeiros. Mas nada deve ser levado tão a sério, e a cerimônia mais importante do cinema, por coincidência, será no Carnaval, que promete o desfile de várias Fernandas pelo Brasil afora.