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Crítica: ‘Meu Verão com Glória’ é raro filme de amor – 27/02/2025 – Ilustrada

São conhecidas as dificuldades envolvidas em filmar com elenco infantil, algo que poucos realizadores fazem bem —caso do iraniano Abbas Kiarostami, que começou sua trajetória em escolas. Além disso, contar a história de uma relação entre uma garota francesa de seis anos e sua babá cabo-verdiana traz armadilhas. Como retratar um amor genuíno fundado sobre a diferença racial e de classe?

Desafios como esses fazem de “Meu Verão com Glória” um filme raro. Premiada em 2014 no Festival de Cannes por “Party Girl”, uma correalização, Marie Amachoukeli escreveu o roteiro do novo filme depois de reencontrar, já adulta, a babá de sua infância, por acaso.

Filmado com câmera baixa, o longa instaura, já na sequência inicial, a perspectiva de Cléo, interpretada por Louise Mauroy Panzani, uma menina de seis anos. Vemos seu olho de perto. Ela está no oftalmologista, não enxerga bem. Quem a acompanha, ficamos sabendo depois, é sua babá, Glória, papel da cabo-verdiana Ilça Moreno Zego, que havia de fato trabalhado como “nounou” em Paris.

Sem experiência de atuação anterior, as duas emocionam com a expressividade de seus corpos e olhares —e com a qualidade da conexão que estabelecem.

É Glória quem busca Cléo na escola, avisa quando está na hora do banho, dá comida, brinca. Uma tarde, no parquinho, o telefone de Glória toca: sua mãe morreu e ela precisa voltar ao Cabo Verde com urgência, tem que cuidar dos próprios filhos. A separação será dolorosa para as duas. Qual é a natureza do vínculo que as une? Como rompê-lo?

Na casa de Cléo, não há sinal de mãe por perto e o pai aparece apenas pontualmente, de passagem. Elas prometem, então, que voltarão a se encontrar. E o pai de Cléo concorda em deixá-la passar as férias no Cabo Verde, junto com Glória e sua família.

A segunda parte do filme se passa, portanto, na vila do Tarrafal, Ilha de Santiago. O cinema francês é menos farto do que o brasileiro em explorar as ambiguidades da relação entre patrões e domésticas e não tem, por exemplo, ficções da envergadura de “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, ou documentários como “Travessia”, de Safira Moreira.

Ainda assim, não há inocência da maneira de filmar de Amachoukeli, consciente dos paradoxos e violências coloniais envolvidas na relação entre a menina e a ama —o título original, em crioulo do Cabo verde, é “Àma Glória”. Assim que Cléo chega ao Tarrafal, as tensões começam. Um amigo de Glória a recrimina. “Mas eu criei essa menina”, responde ela.

Enciumado, César, vivido por Fredy Gomes Tavares, seu caçula, ignora o presente que a hóspede lhe trouxe. Porque cuidava de Cléo, a mãe quase não o viu crescer.

Lindas sequências animadas emolduram a história. Nelas, vemos o vulcão do Fogo, um mergulho no mar ou um céu alaranjado, num desenho infantil que reforça a perspectiva de Cléo, que “Meu Verão com Glória” busca traduzir.

Com encenação sóbria e cuidadosa, além de passagens filmadas em registro quase documental, o filme demonstra raro domínio da técnica e das questões políticas envolvidas. Uma beleza.

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