17 mar 2025, seg

Discurso anti-impunidade alça vítimas de crimes à política – 01/02/2025 – Ilustríssima

[RESUMO] Ana Carolina Oliveira e Leniel Borel, mãe e pai de crianças assassinadas e eleitos vereadores em São Paulo e no Rio de Janeiro em 2024, defendem bandeiras do chamado populismo penal. Segundo especialistas, o fenômeno se manifesta na mobilização de sentimentos legítimos de indignação contra crimes de grande repercussão e busca reconfigurar o poder punitivo na sociedade sem oferecer soluções eficazes ao aumento da violência.

Em um vídeo publicado poucos dias antes do segundo turno das eleições de 2024, uma vereadora eleita declarou seu apoio a Ricardo Nunes (MDB), prefeito de São Paulo e então candidato à reeleição. “Não posso ser a favor”, diz ela, “a alguém que não vota contra a saidinha, que é aquela que colocou o assassino da minha filha na rua”.

Ana Carolina Oliveira, segunda colocada na lista de vereadores mais votados no município e mãe de Isabella Nardoni, morta aos 5 anos, fazia referência ao voto de Guilherme Boulos (PSOL), adversário de Nunes na disputa, contra uma proposta que restringia a saída temporária de presos.

Em maio de 2024, o Congresso derrubou o veto de Lula (PT) ao projeto de lei, extinguindo as chamadas saidinhas em datas comemorativas de presos em regime semiaberto. A mudança não afeta Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, condenados pelo assassinato de Isabella, já que as novas regras se aplicam apenas a pessoas condenadas depois de a legislação entrar em vigor.

Além de se opor à progressão de regime no sistema prisional, Ana Carolina citou a filha durante a campanha e prometeu atuar na proteção de crianças.

No Rio de Janeiro, Leniel Borel, vereador eleito com mais de 34 mil votos, ganhou notoriedade depois da morte de Henry, seu filho de 4 anos, em 2021. Assim como Ana Carolina, Leniel transformou o combate à violência doméstica contra crianças em cerne da sua campanha.

Ambos compartilham, além do partido (Podemos), as bandeiras do chamado populismo penal, que promete acabar com a impunidade, aumentar penas, criar regimes prisionais mais rigorosos e reduzir a maioridade penal —fenômeno movido mais pela popularidade das propostas que por sua eficácia.

Ana Carolina e Leniel também exploraram seus dramas pessoais durante a campanha. O pai de Henry publicou uma carta aberta ao filho morto, na qual promete lutar por justiça. Às vésperas da eleição, Ana Carolina Oliveira fez o mesmo em uma postagem no Instagram, rede em que tem 1,6 milhão de seguidores.

O populismo penal pode ser definido como uma reconfiguração do poder punitivo, que “passa a ser exercido de maneira mais agressiva”, diz André Martins Pereira, defensor público do estado do Pará e autor de “Populismo Penal e Política Criminal Brasileira” (Tirant).

O conceito foi caracterizado por John Pratt, professor emérito de criminologia da Universidade Victoria de Wellington, na Nova Zelândia. Em livro publicado em 2007, o pesquisador escreve que esse fenômeno “representa a maior mudança na configuração do poder penal na sociedade moderna”, ultrapassando o oportunismo político e a exploração da opinião pública.

Para o pesquisador, a sensação de impunidade alimenta expressões de raiva, desencantamento e desilusão com o sistema criminal vigente. Por isso, o populismo penal faz referência a “sentimentos e instituições”.

O conceito também pode ser entendido, segundo Pereira, como uma forma de operacionalizar o sistema penal, formado por diversas agências, como a Defensoria Pública e o Ministério Público, polícias, secretarias de Segurança e Parlamentos.

“O lado ruim do populismo penal é a mobilização de emoções válidas”, afirma Rafaela Venturim, mestre em ciências criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. “As pessoas têm direito de sentir revolta após uma violência, mas isso leva para um caminho enganoso, com medidas que não vão solucionar o problema.”

Filmes, podcasts e séries de “true crime” também alimentam a ideia de que o sistema precisa de mais rigor contra os criminosos. “Crimes chocantes, violentos contra o corpo físico ou a vida, acabam circulando mais intensamente”, diz André Martins Pereira.

O macabro atrai o interesse do público. De acordo com o Spotify, o consumo de podcasts de “true crime” aumentou 52% entre o primeiro semestre de 2021 e de 2022 e jovens de 18 a 24 predominam entre os ouvintes do gênero.

O documentário da Netflix “Isabella: o Caso Nardoni” é outro exemplo do alcance do gênero. A obra foi vista por 5,7 milhões de pessoas nos primeiros quatro dias de exibição, segundo a plataforma.

Nesse contexto, é preciso questionar o papel do “true crime”, afirma Rafaela Venturim, que considera a abordagem de algumas produções mais problemática que o gênero em si. “Podemos fazer um debate sobre casos famosos, e coisas muito boas podem sair desse debate. Não digo que não devemos falar sobre isso. É mais a forma como a gente está direcionando esse debate em um Brasil tão violento e extremista.”

“Para a pessoa comum, que talvez não tenha acesso a grandes debates sobre segurança pública, é muito fácil cair na emoção e absorver os sentimentos da família da vítima e, sem senso crítico, aceitar o que a pessoa disser como possível solução”, diz Venturim.

Três crimes de grande repercussão que alçaram vítimas a cargos no Legislativo merecem ser lembrados.

Em 1997, Ives Ota, 8, foi sequestrado e morto em São Paulo. Ele era filho de Masataka e Keiko Ota, donos de uma rede de lojas de R$ 1,99. A Justiça condenou três pessoas pelo crime. Tanto Masataka quanto Keiko se candidataram e foram eleitos depois do caso —ambos defendiam punições mais severas para crimes hediondos.

Masataka foi vereador de São Paulo por dois mandatos, de 2013 a 2020, pelo Pros e pelo PSB. Sua atuação legislativa se restringiu à criação de programas e fundos de proteção a crianças e ao combate da violência infantil —Masataka se notabilizou pela instituição do Dia do Perdão. Vereadores têm poucas prerrogativas para legislar em temas relacionados ao sistema penal.

Já Keiko foi deputada federal entre 2011 e 2019. No Congresso, apresentou mais de 300 propostas, entre as quais pelo menos 15 buscavam alterar o Código Penal. Apenas um projeto de lei de sua autoria foi aprovado e está em vigor, o que criou o Dia Nacional do Perdão, celebrado em 30 de agosto, data da morte do seu filho.

Keiko não conseguiu se reeleger em 2018 nem voltar à Câmara dos Deputados em 2022. Na última eleição, concorreu à Câmara Municipal de São Paulo pelo Podemos, o mesmo partido de Ana Carolina, e, com 12.480 votos, só conseguiu uma vaga como suplente.

Em um segundo caso, o advogado Ari Friedenbach, pai da adolescente Liana Friedenbach —morta em 2003 por Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, na época um adolescente de 16 anos—, foi eleito vereador de São Paulo pelo Pros em 2012. Outros quatro homens adultos foram condenados pelos crimes contra Liana e o namorado, Felipe Caffé.

Após o caso, Ari se tornou especialista em segurança pública e chegou a defender a redução da maioridade penal. No entanto, mudou de opinião com o tempo. “A redução é uma estupidez, não dá certo. Ainda mais no nosso sistema prisional, que é uma aberração. Imagina colocar mais gente, mais nova, no cárcere?”, disse Ari em entrevista ao UOL em 2023.

Ari não se reelegeu em 2016 e, em 2024, tentou voltar à Câmara de São Paulo, concorrendo pelo PSOL, e obteve apenas 1.780 votos. Durante seu período como vereador, não apresentou propostas que fomentassem o populismo penal.

Márcio Nakashima, por sua vez, entrou na política antes de sua vida ser atingida por um crime de grande repercussão. Sua irmã, Mércia Nakashima, foi morta por Mizael Bispo de Souza, seu ex-namorado, em 2010.

Em 2004, Márcio se elegeu vereador de Piracaia, no interior paulista, pelo PDT. Depois, passou um longo período fora da política, tentando, sem sucesso, cargos no Legislativo e no Executivo. Em 2018, foi eleito deputado estadual, e em 2022, reeleito. Concorreu à Prefeitura de Guarulhos em 2024 e não chegou ao segundo turno.

Na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), o parlamentar tem como plataforma o combate à violência contra a mulher, usando como base o crime que vitimou sua irmã. Em levantamento feito no site da Casa, constam ao menos 127 propostas apresentadas por Márcio.

Vinte e três têm medidas voltadas à segurança de mulheres, e três foram aprovadas e sancionadas pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Uma obriga estabelecimentos paulistas a oferecer auxílio a mulheres em situação de risco. Outra cria o auxílio-aluguel para mulheres vítimas de violência doméstica. A terceira estabelece qualificação técnica e profissional gratuita com preferência de vagas para mulheres vítimas de violência.

André Martins Pereira aponta que a inclusão dessas vítimas na vida pública é uma manifestação do populismo penal. “Com seus discursos, essas pessoas alimentam esse fenômeno e a ideia difusa de que o sistema penal [mais endurecido] tem a capacidade de garantir a segurança pública.”

Tanto ele quanto Rafaela Venturim dizem que o populismo penal não tem ideologia. Para eles, a pauta do endurecimento do sistema tem ciclos e transita nas esferas municipal, estadual e federal, da esquerda à direita, e a própria eleição de vítimas por partidos diversos mostra isso.

A pesquisadora pondera que as críticas não se dirigem às pessoas, mas aos seus posicionamentos: Ana Carolina Oliveira “está legitimada a partir do crime do qual ela também foi vítima. É muito difícil, porque criticar essa postura faz parecer que você é insensível”, afirma. “No debate público, precisamos ter muita cautela com as emoções que estão sendo mobilizadas.”

Para Venturim, a sociedade tem dificuldade de enxergar nuances e há fragilidades na atuação de movimentos sociais. “Não estamos fazendo o diálogo que desmonta o populismo penal de forma mais ampla.”

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