Era madrugada de sexta-feira (28) quando o cantor Durval Lelys chegou ao camarim do Camarote Salvador, espécie de fortaleza erguida na orla de Ondina que recebeu um público de 5.000 pessoas.
Calça e camisa preta, Durval carregava um boné preto voltado para trás, sua marca desde os tempos da banda Asa de Águia. Aos 67 anos, se mantém mergulhado no axé, movimento musical que celebra 40 anos neste Carnaval. A festa se confunde com a sua trajetória, que começou em 1982 no bloco Pinel.
“Olha, eu vou falar até de uma forma mais descontraída: a gente fez esses blocos mesmo pra farra, pra pegar mulher. O baiano é isso que você está vendo aqui, 99% das pessoas que estão na rua querem farra, curtição. Carnaval é a festa profana”, afirmou o cantor ao repórter João Pedro Pitombo.
De família de classe média, Durval estudou violão clássico na infância, mas foi o Carnaval que o levou a se tornar músico profissional. Debutou como compositor ao vencer um concurso do Bloco Traz os Montes com a música “Frevo Serpente”. O bloco era liderado pela Banda Scorpions, embrião do Chiclete com Banana.
Depois de seis anos como diretor artístico do Bloco Pinel, assumiu os vocais do trio elétrico após a saída do cantor Ricardo Chaves. Anos depois, fundou a banda Asa de Águia e migrou para o Bloco Crocodilo. Foi só aí que se libertou das amarras e conquistou a sua independência artística.
Essa música ganharia características próprias a partir dos anos 1980, se uniria em torno da marca axé music e viraria uma indústria poderosa a partir da década seguinte. Para Durval, blocos e bandas vieram para “organizar a bagunça”, mas a essência do Carnaval está em sua pluralidade.
Ele lembra que começou tocando um rock irreverente, mas por influência do Carnaval abraçou o samba-reagge, galope e lambada. Essa simbiose com a festa, afirma, foi motor do movimento nestes 40 anos: “O axé é imortal, é Highlander. O axé é filho do Carnaval. Enquanto existir Carnaval existirá axé.”
Durval subiu ao palco na quinta (27) por volta de 1h30, enfileirando sucessos de sua trajetória. Acostumado a trio de grande porte como o Dragão da Alegria, apresentou ao público um protótipo da Xupeta Elétrica, 100% movida a energia elétrica. “É o primeiro passo para um novo trio.”
Se Durval Lelys se apresentou em um camarote stricto sensu, Carlinhos Brown comandou a abertura oficial do Carnaval no trio elétrico Camarote Andante. O cantor, compositor e fundador da Timbalada foi o anfitrião de uma celebração dos 40 anos do axé e cantou com convidados.
Despida da skin de ministra, Margareth Menezes foi a primeira a subir no trio e comandou os foliões com seu chamamento-símbolo: “Eu falei faraó-ó-ó”, cantou e ouviu a resposta do público. Daniela Mercury veio na sequência, cantou três músicas e deu espaço a Claudia Leitte, recebida com vaias.
A reação foi resultado de uma espécie de guerra santa figurada que precedeu o Carnaval. Fãs das cantoras se digladiam nas redes sociais em meio a polêmicas em torno de alteração na letra da música “Corda do Caranguejo”, na qual Claudia trocou a orixá Iemanjá por Yeshua, que significa Jesus em hebraico.
Enquanto Margareth, Daniela e Claudia cantavam no trio, Xanddy Harmonia se espremia em um camarim ao lado do cantor Felipe Pezzoni, da Banda Eva. Ambos estavam caracterizados como Luiz Caldas, precursor do axé com o disco Magia, e gargalhavam ao simular a dança da música Fricote.
Ao receber Xanddy em seu trio elétrico, Carlinhos Brown fez um paralelo entre o artista e o cantor Sidney Magal, chamado de revolucionário por deixar “um legado de homens que sobem ao trio e dançam com toda a liberdade”. Xanddy despontou em 1998 com o Harmonia do Samba encarnando o frontman sensual.
“De início, eu nunca tive esse foco. Foi realmente natural. Até me incomodou um pouco o fato de as pessoas entenderem mais a dança que o canto. Mas no decorrer da caminhada tudo se ajustou e sou grato ao que a dança fez na minha vida”, disse o cantor, que é casado com a dançarina Carla Perez.
“As mulheres adoravam, eu ia atrás para ver”, gargalhou a cantora Gilmelândia, cria da Banda Beijo que também cantou com Brown. Ainda assim, disse Xanddy, houve muito preconceito: “As pessoas achavam que não era normal o homem dançar. E hoje, não. E que bom que a gente quebrou tabus, essas barreiras.”
Enquanto Brown emendava clássicos do axé no trio elétrico no Campo Grande, os camarotes oficiais abrigavam uma espécie de reunião extraoficial do Consórcio Nordeste. Estavam lá três dos quatro governadores petistas: o baiano Jerônimo Rodrigues recebeu Rafael Fonteles, do Piauí, e Fátima Bezerra, do Rio Grande do Norte. Elmano de Freitas, do Ceará, tomou falta.
Fonteles assistiu à apresentação dos trios ao lado de Jerônimo e do prefeito Bruno Reis (União Brasil). Ouviu de Jerônimo dados sobre a movimentação econômica da festa e o preparou para o desfile do BaianaSystem, que vinha na sequência. “Isso aqui parece que vai acabar o mundo. É impressionante.”
Fonteles disse ser folião antigo —”Vim várias vezes quando era jovem”—, mas foi embora antes da passagem do trio. Fátima Bezerra ficou: escapuliu do camarote com um copo de uísque na mão e emendou uma conversa animada sentada em um banco na Praça do Campo Grande.
BaianaSystem atravessou o circuito. Parecia que o mundo ia acabar.