O “fenômeno frei Gilson”, o religioso cantor que junta nas madrugadas desta Quaresma por volta de 1 milhão de pessoas para rezarem online o rosário, vem gerando um certo desconforto nos ungidos da razão com essa mistura de ascese e algoritmo, de devoção e engajamento digital.
Marcado pela espiritualidade do movimento da Renovação Carismática Católica (RCC), o frei, que tem 7,5 milhões de seguidores no Instagram e 6,7 milhões em seu canal do YouTube, surge como um sinal da força católica num Brasil que se torna mais evangélico e indiferente à religião. Entre outros influencers católicos que despontaram no país nos últimos anos, o fenômeno coloca uma dose de efervescência no cenário religioso brasileiro.
Em vez de rapidamente rotular os participantes das orações em conjunto com epítetos pejorativos advindos do mundo político polarizado, é preciso perguntar, antes de tudo, o que deseja a massa de pessoas que às 4h da madrugada se conglomera virtualmente para rezar juntas; o que encontram nessa experiência; e quais as suas necessidades.
Para responder essas questões, uma pesquisa com os próprios fiéis seria essencial. No entanto, algumas hipóteses já se delineiam a partir do próprio contexto. O fenômeno parece evidenciar, à sua maneira, um sintoma social da contemporaneidade, aquilo de que ninguém quer saber, mas que se insinua por todos os lados: as reações adversas da desintegração do mundo simbólico que compartilhávamos.
As concepções religiosas e morais desempenhavam uma função simbólica essencial na estruturação subjetiva das pessoas, indicando o que é verdadeiro ou falso, o que deve ou não ser feito, e oferecendo margens estruturantes para a vida cotidiana. No entanto, esse papel se enfraqueceu com o processo de modernização pelo qual o Brasil também passou, trazendo uma série de consequências.
O enfraquecimento da amálgama oferecida pela instituição religiosa como centro regulador do social, papel desempenhado pela Igreja Católica no Brasil por quase todo o século 20, no entanto, não nos livrou de sua existência lógica. Aquilo que dá estrutura a uma sociedade inevitavelmente exerce força sobre ela. Porém, o seu enfraquecimento abre espaço para tentativas de novas formas de regulação e pertencimento, de maneira difusa, imprevisível e fragmentada.
O “fenômeno frei Gilson” ilustra bem as dinâmicas no campo religioso brasileiro sob a modernização e a consolidação de um mercado de bens de sentido. A busca pelo vínculo e conexão com a comunidade é atravessada pela vivência subjetiva da fé religiosa, em que a experiência pessoal do sagrado acontece no espaço íntimo dos lares, na solidão de cada fiel, a partir da atuação carismática do religioso, sem as mediações institucionais tradicionais. A relação é individualizada: fiel, frei Gilson e Deus.
O fenômeno revela o desejo de uma fé íntima, pessoal, sem intermediários institucionais, característica das vivências religiosas contemporâneas. Ao mesmo tempo exprime a necessidade irreprimível de se sentir parte de algo maior, em que margens e sentidos são restabelecidos frente a uma sociedade em que o pecado abunda.
A tensão entre o frei e o mundo secular é evidente. Assim que suas orações na madrugada se iniciaram, seus discursos foram vasculhados na internet por seus detratores e compartilhados nas redes sociais. Neles vem à tona o aspecto moral conservador que o caracteriza. Isso imediatamente gerou pânico entre aqueles que já anteveem as eleições de 2026 e temem o papel das lideranças religiosas no pastoreio de seus rebanhos em direção a um líder político alinhado ao imaginário cristão conservador.
Frei Gilson é o outro da ordem. Um corpo alheio no jogo convencional das instituições e poderes. Mais do que um sinal da persistência católica no espaço público, ele evidencia a força do discurso religioso conservador como elemento de coesão simbólica. Ao mesmo tempo, encarna os paradoxos da modernidade religiosa. De um lado, a busca por uma experiência espiritual personalizada, sem mediações institucionais rígidas. De outro, a necessidade de pertencimento e de uma âncora em um mundo onde as referências tradicionais se dissolvem.
TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.