Com tristeza li a coluna de seu pai, Jamil Chade, contando sobre a violência que você sofreu na escola. Eu adoraria escrever para você não se preocupar e garantir que nunca vai ser deportado. Mas não posso fazer isso porque até mesmo com crianças o absurdo acontece.
Posso dizer a você o que disse para o meu filho quando uma vizinha, aos berros, exigiu que saísse do prédio no qual a gente mora, na chuva, porque ele estava sem o reconhecimento facial do portão e ela gritou que não tinha como saber se era um bandido.
Primeiro, nada que você e o Lucas tenham feito justifica o que ouviram. Vocês não podiam ter sido ofendidos devido a nacionalidade, tom da pele, cabelo ou roupa que usavam.
Depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sobre a qual você deve ter aprendido, Estados Unidos, Brasil e mais 46 países assinaram a declaração universal dos direitos humanos que define em seu primeiro artigo: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
Espírito esse que já foi valorizado no senso comum e que, cada vez mais, tem sido substituído pela premissa de que estamos uns contra os outros. O Estado, que deveria proteger todas as pessoas, e assim possibilitar que cada uma abra mão da violência, incentiva e pratica o horror contra alguns grupos.
Pessoas negras, indígenas, imigrantes nunca deixaram de ser alvos, nem do próprio Estado.
O segundo artigo estabelece que: “Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. E para garantir a mesma capacidade a todas as pessoas, elas precisam ser tratadas como diferentes.
Como aquele meme famoso explica direitinho, para pessoas com alturas diferentes conseguirem assistir a um jogo de futebol acima de um muro, cada uma precisa de um banco de altura diferente.
O banco com altura suficiente para a pessoa mais alta não vai ajudar a mais baixa a ver o jogo. As políticas públicas precisam considerar as diferenças para garantir direitos iguais para todas.
Mas você está vendo no noticiário que aí nos Estados Unidos o presidente está obrigando os órgãos do Estado, as universidades e quem mais recebe dinheiro público a interromper políticas efetivas de equidade, que oferecem oportunidades diferentes aos diferentes com o objetivo de produzir igualdade e justiça, dizendo que elas promovem discriminação.
Uma retórica simplista, compreendida e repetida sem dificuldade por crianças de 10 e 11 anos no pátio da escola. Crianças que aprendem, com o próprio presidente, novas palavras para ofender os amigos.
Sua colega errou. Trump está errando. E você deveria ouvir pedidos de desculpas de ambos, que poderiam aprender com o erro, e não ofender imigrantes ou quaisquer pessoas nunca mais.
Posso dizer a você e ao Lucas que somos muitas as pessoas resistindo à violência praticada e incentivada pelos Estados. Com você, Marc, estão as feministas, os movimentos negros, populares e internacionalistas dos EUA, do Brasil e do mundo todo.
Não há motivo para que você ou sua família seja deportada. E eu desejo que isso nunca aconteça. Mas saiba que você tem muitas amigas e amigos no Brasil. Não está nem estará sozinho.
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