Aos leitores hiperglicêmicos ou apenas amargos: o texto a seguir contém fartas doses de açúcar e afeto, além de um cineasta predileto. São gostosuras a se perder de vista. Azuis, verdes, rosa. Com frutas, com flores. Altos feitos carros alegóricos ou rebaixados como aqueles que, mesmo solados, ornam gloriosamente com café.
No auge da volúpia coletiva, com dedos e beiços lambuzados, alguém se dá ao trabalho de contá-los. Da última vez, em San Francisco, foram 613 deles. Nas próximas —quiçá em Paris, Nuuk ou Itaquaquecetuba— apenas o céu e a cobertura serão o limite.
Sim, piqueniques de bolo viraram “trend” mundial. Prestigiados por amadores e profissionais, ocupam quilômetros de mesas e toalhas xadrez ao ar livre. Angariando “likes” nas redes sociais e engajando analógicas papilas gustativas.
Mais do que mera guloseima, quantificada por xícaras e colheres de chá, bolos sempre foram uma receita eficaz contra meus azedumes cotidianos. A tentativa de colocar introspecções em pratos rasos, num exercício de comedimento entre alma e estômago. Um bocadinho de cada vez, saboreado ainda quente, recém-saído do forno —mas já de cabeça fria.
Não por acaso, foi por entre postagens de um piquenique deveras ornamental em Los Angeles que o algoritmo me ofereceu de bandeja —e à mesma cidade— a notícia da morte de David Lynch.
Comovidíssima, deixei passar os lamentos em cadernos culturais. Maratonei entrevistas, zerei memes da internet e refavoritei antigos tuítes do mestre. Deixando tudo assentar, como massa que descansa.
Até que, por fim, cheguei à cereja desse bolo. Digo: a essa torta de cereja. Um clipe compilado por fãs com todas as incansáveis referências à sobremesa favorita do agente Cooper em “Twin Peaks”. Um deleite nunca negligenciado, mesmo nas mais surrealistas etapas da busca por quem matou Laura Palmer.
“Pois David Lynch era igualzinho ao personagem”, comentou o também diretor Guillermo del Toro numa entrevista que vi no YouTube, mordiscando uma fatia de reflexão sobre o assunto, recoberta por chantilly. “Um cara brilhante e, por incrível que pareça, não-irônico. Aficionado por tortas de cereja”.
Ou seja: ainda está em tempo. Deixo aqui o convite para um piquenique em homenagem ao realizador de “Cidade dos Sonhos” e “A Estrada Perdida”. Ao que prometo levar meu mais terno bolo Blue Velvet.