Recursos hídricos continentais e oceanos, que fornecem água para consumo humano, sustentam a produção de alimentos e a vida aquática, enfrentam desafios crescentes impostos pelas mudanças climáticas —que alteram a distribuição de chuvas e a temperatura— e pela poluição por microplásticos.
“A água está sob ataque”, constata Loïc Fauchon, presidente do Conselho Mundial da Água, organização internacional que reúne governos, empresas, cientistas e sociedade civil para promover a gestão sustentável dos recursos.
Para Fauchon, os inimigos são três: pouca água, água em excesso e água de má qualidade –e agora eles devem ser combatidos ao mesmo tempo, graças às mudanças climáticas, ao crescimento populacional explosivo em algumas regiões do planeta e à poluição. Neste sábado (22), em meio a esses desafios, é celebrado o Dia Mundial da Água.
“Nossa geração considerava que o mundo da água estava dividido em dois: o da aridez e o da umidade. Hoje já não é mais o caso. Os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita tiveram inundações catastróficas no ano passado e são países secos. Vamos ter de reconfigurar totalmente o investimento em regiões onde só conhecíamos aridez ou umidade”, diz.
“Vamos ter de consumir menos e produzir mais [água potável]. Adotar técnicas de transferência de água, reciclagem e dessanilização”, afirma também.
Estudo lançado pela ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) no ano passado indicou que as mudanças climáticas podem levar a uma redução na disponibilidade de água de até 40% nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste até 2040.
“O cenário é preocupante. Precisamos construir infraestrutura para reservar água em todo o país e infraestrutura de drenagem urbana para lidar com enchentes”, afirma Veronica Sánchez da Cruz Rios, diretora-presidente da ANA.
“São iniciativas integradas, nos vários setores produtivos —geração de energia, agroindústria, abastecimento humano, planejamento urbano—, necessárias para que essa realidade não engesse o crescimento do país nos próximos anos”, completa.
Dados divulgados nesta sexta-feira (21) pela plataforma colaborativa MapBiomas mostraram que o Brasil perdeu pouco mais de 3% da área coberta por água nos últimos 40 anos em relação à média da série histórica, iniciada em 1985.
O pantanal foi o bioma mais prejudicado –no último ano, chegou a perder cerca de 60% da lâmina hídrica em relação à média das quatro décadas.
A perda de recursos hídricos expõe o problema da distribuição da água no Brasil. Segundo dados do MapBiomas, a amazônia é o bioma mais rico, com 61% da superfície de água do país, mas está longe das maiores cidades brasileiras e abriga pouco menos de 14% da população brasileira –segundo estimativa do IBGE de 2022 para a Amazônia Legal.
“Aprendemos na escola que o Brasil é um país abundante em água. De fato, temos muita água, mas o cenário dos últimos 25 anos mostra uma situação crítica. Isso acende um alerta sobre a necessidade urgente de fortalecer políticas públicas e a regulação dos recursos hídricos”, diz Juliano Schirmbeck, coordenador técnico do MapBiomas Água.
Veronica Rios, da ANA, destaca que, no Brasil, “já há conflitos pelo uso da água, principalmente em regiões onde a disputa é entre geração de energia e agricultura”. “Temos mais solicitantes de autorizações de uso do que a água disponível em 2025”, resume.
Para Marcel Sanches, presidente da Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental), é preciso buscar flexibilidade na matriz de recursos hídricos.
“Não se trata apenas de água superficial, como o armazenamento em mananciais, mas também de considerar o uso de água subterrânea para abastecimento humano. Já temos tecnologia suficiente para utilizar, mesmo que de forma indireta, a água de reúso”, afirma.
Quando há água, nem sempre há qualidade. É o que acontece na mata atlântica. A região que se estende pela costa brasileira, do Nordeste ao Sul, concentra cerca de 70% da população do país, segundo estimativas. Mas a alta taxa de urbanização e a intensa atividade industrial têm reflexos na má qualidade da água.
Levantamento feito pela Fundação SOS Mata Atlântica, divulgado nesta sexta-feira, mostrou que no ano de 2024 os rios do bioma tiveram uma piora na qualidade em relação a 2023.
A maioria dos 112 corpos d’água analisados (75,2%) foram classificados com qualidade regular, indicando que não podem ser captadas diretamente para consumo humano ou animal e uso em alguns cultivos agrícolas.
Assim, há um custo alto de tratamento que não vemos quando abrimos a torneira, diz Gustavo Veronesi, coordenador do programa Observando os Rios na SOS Mata Atlântica. Para ele, o maior obstáculo para a limpeza dos rios da região é a falta de saneamento básico.
O censo de 2022 mostrou que 37,5% da população brasileira morava em casas desconectadas da rede de coleta de esgoto. O Marco Legal do Saneamento, lei 14.026, de 15 de julho de 2020, estabelece como meta que, até 2033, 99% da população deve ter acesso à água tratada, e 90% à coleta de tratamento do esgoto.
Segundo a diretora-presidente da ANA, desde 2020 já foram contratados mais de R$ 30 bilhões em investimentos para avançar nas metas definidas.
Fragilidade nos oceanos
Nos oceanos, as mudanças climáticas, junto de outras ameaças, têm efeitos silenciosos que fragilizam todo o sistema, de acordo com Alexander Turra, professor no Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP).
“É como levar socos no fígado em uma luta de boxe: cada impacto reduz a capacidade do oceano de se recuperar e lidar com novos desafios. Temos um ambiente estressado, como se estivesse em burnout”, diz.
Mas há ainda outro risco emergente que preocupa especialistas no mundo todo: os microplásticos. Classificados como qualquer fragmento de plástico com tamanho menor do que 5 mm (ou 0,5 cm), as partículas derivam de objetos de plástico que sofrem desgaste pelo atrito ou radiação solar.
Alguns produtos cosméticos e de higiene pessoal também podem conter esfoliantes feitos de microesferas de plástico. Além disso, a lavagem de roupas de tecidos sintéticos, como poliéster e nylon, libera o material, que escorre pelo encanamento e chega aos rios e oceanos. Ali, é consumido por animais aquáticos.
Os microplásticos podem reter em sua superfície outros micropoluentes, como resquícios de remédios e pesticidas. O acúmulo dessas partículas no organismo de animais pode levar a alterações comportamentais e genéticas.
Um levantamento feito com 78 artigos científicos de pesquisas realizadas no Brasil mostrou que até cerca de 59,7% dos peixes de água doce podem já estar contaminados por microplásticos. No ambiente marinho, o número é de 59,3%.
Suzane de Oliveira, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Paraná Setor Litoral (UFPR Litoral), que fez a pesquisa durante seu doutorado, diz que os estudos existentes podem estar mostrando apenas a ponta do iceberg. “Precisamos de mais amostras, maiores, e mais laboratórios envolvidos”, afirma.
No dia 13 de março foi inaugurado no IO-USP o Centro de Referência para Quantificação e Tipificação do Lixo do Mar (CeLMar), laboratório que vai atuar com foco em análises de microplásticos.
O espaço é um dos poucos no país capaz de fazer as análises mais minuciosas das partículas, como tipo, tamanho e substâncias adsorvidas.
De acordo com Turra, responsável pelo laboratório, o empreendimento custou cerca de R$ 1,4 milhão —incluindo o aparelho que faz as análises, cedido por um contrato de comodato pela empresa Shimadzu do Brasil, de valor próximo de R$ 1 milhão.
A Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), desenvolve um protocolo para fazer o monitoramento de microplástico em águas do litoral do estado. O projeto é realizado em parceria com a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
A agência prevê um piloto para o segundo semestre deste ano. Enquanto isso, o caminho é reduzir o uso de plástico para evitar que mais partículas cheguem à água, diz Cláudia Lamparelli, gerente do setor de águas litorâneas da Cetesb.
“As pesquisas vão levar tempo para serem feitas, mas não podemos esperar os resultados para combater a poluição por plástico”, conclui.