19 mar 2025, qua

Mulheres querem desvincular autocuidado e consumismo – 18/03/2025 – Equilíbrio

Quando a Covid-19 chegou ao Brasil, a paraibana Isadora Braga se viu, como quase todos os brasileiros, confinada em casa. Para se distrair, passou a usar cada vez mais as redes sociais —e a consumir produtos de beleza. “Viraram meu principal entretenimento, e elas são uma vitrine de consumo, né?”, diz ela, que hoje tem 22 anos e é estudante de direito.

Isadora é uma das mulheres que, nos últimos anos, passou a se preocupar com a crescente associação entre autocuidado e consumo —ou até consumismo. Motivadas muitas vezes por tendências e propagandas em redes como o TikTok e o Instagram, mas também por compulsão, elas hoje buscam se afastar da compra desenfreada de produtos e serviços.

“Eu comprava muita coisa desnecessária, comprava para testar e acabava jogando fora se não gostava ou deixando passar da validade sem uso”, afirma. “Por exemplo, quando eu ia à dermatologista por causa de acne, ela passava alguns produtos e eu queria comprar outros por conta própria, só pelo prazer de consumir.”

Segundo a plataforma de dados Statista, o mercado global de produtos de cuidado pessoal é estimado em cerca de US$ 143 bilhões (R$ 809 bilhões, aproximadamente). No Brasil, o valor chega a US$ 4,5 bilhões (cerca de R$ 25 bilhões). Esse mercado inclui produtos do chamado “skincare”, como protetor solar e cremes faciais, além de itens para cabelo, desodorantes, pastas e escovas de dentes, entre outros.

Nas redes sociais se multiplicam vídeos de cuidados com o corpo que envolvem tantos produtos que chegam a ser caricatos. Uma postagem no TikTok, que soma 879 mil curtidas, mostra uma rotina de tratamento para as mãos com nove produtos, entre esfoliante, óleo, creme e talco. Em outra, que tem 1,2 milhão de curtidas, são usados 14 produtos para preparar um banho de banheira.

A ideia de um autocuidado associado ao poder de compra é bem distante daquela difundida pelos Panteras Negras —grupo marxista que entre 1966 e 1989 reivindicou direitos para a população negra dos Estados Unidos— e que está nas origens modernas do conceito.

Cuidar de si era, para os Panteras, aderir a práticas de saúde física e mental —eles chegaram a ter centros de saúde gratuitos para tratar problemas como a anemia falciforme, mais comum em pessoas negras. A ativista Angela Davis já contou que começou a fazer ioga durante o período que passou presa em 1970.

A ilustradora paulistana Sofia Fajersztajn, 28, diz que almeja uma versão de autocuidado mais próxima dessas origens. “Eu acho que autocuidado é se observar e tentar cuidar de si mesma neste mundo louco em que a gente vive”, afirma. “Pode ser encontrar uma amiga, ter um hobby, tentar balizar meu tempo entre atividades de trabalho e outras que não são para ganhar dinheiro.”

Isso não significa, é claro, que ela não consuma produto nenhum ou não se interesse pelo cuidado estético que virou a marca do autocuidado contemporâneo. O xodó de Sofia é o cabelo, cacheado e volumoso.

“Por muito tempo foi difícil achar produtos para o meu tipo de cabelo, então hoje eu gosto, sim, de ter esse cuidado específico”, diz. “Mas não é como alguns anos atrás, que eu ia toda semana na perfumaria ver produtos novos, acreditava em todas as promessas dos cremes.”

No caso da gerente de marketing Pilar Magnavita, 42, a rotina estressante encontra alívio no consumo de serviços de autocuidado. “Quando eu tenho condições financeiras, isso pode chegar a 30% da minha renda”, diz.

O pacote inclui coisas como massagem, drenagem, acompanhamento nutricional e de endocrinologista, acupuntura, academia —tudo relacionado a saúde e bem-estar, mas que na vida dela assumiu contornos compulsivos.

“Eu tenho compulsão com comida e fiz cirurgia bariátrica”, conta. “Aí minha compulsão mudou de foco, foi para compras. Então para mim é um lance de roupas, de ter um dia de princesa, igual àquela música do Seu Jorge: ‘vai no cabeleireiro, no esteticista’, o pacote completo”, brinca.

Pilar aprendeu a diversificar o leque do que considera importante como autocuidado porque percebeu que, quando o orçamento aperta, se não substituir algum serviço pago por outra prática acaba voltando novamente de forma não saudável para a comida.

O comportamento consumista em relação ao autocuidado pode ser nocivo, alerta a médica dermatologista Samia Ligabue, integrante da Sociedade Brasileira de Dermatologia.

“Muitas vezes o paciente já chega no consultório querendo determinado procedimento ou determinado produto”, diz. “O resultado pode não ser satisfatório porque não há indicação médica real para aquele tratamento. Além disso, todo ativo e todo procedimento tem seu risco associado.”

A médica diz que é cada vez mais comum ver adolescentes e até crianças, normalmente meninas, chegando ao consultório com reações causadas pelo uso precoce de produtos cosméticos. “Elas acabam piorando quadros de dermatite atópica, de acne, e certamente vão ter problemas no futuro porque começam a sensibilizar a pele muito cedo”, afirma.

No ano passado, viralizaram nas redes sociais vídeos de multidões de pré-adolescentes nas lojas da rede de cosméticos Sephora. Uma rápida busca no TikTok faz surgirem dezenas de vídeos de crianças mostrando suas compras na loja ou exibindo suas complexas rotinas noturnas de skincare.

Nos Estados Unidos, alguns estados já começam a se mobilizar. Na Califórnia, o deputado Alex Lee apresentou em fevereiro um projeto de lei que proíbe menores de 18 anos de comprarem produtos com ativos anti-idade, como retinol e ácido glicólico.

Sofia, a ilustradora paulistana, diz que sempre fica assustada quando o algoritmo lhe entrega vídeos dessas mini-influenciadoras de beleza. “Eu acho que é muito claro que há uma questão de gênero e o quanto essas meninas estão sendo levadas a achar que precisam corrigir problemas que, evidentemente, não existem. Isso é violência estética, não é autocuidado.”

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