Passados praticamente quatro meses desde o atrapalhado anúncio em cadeia nacional que deixou o mercado incrédulo e fez o dólar disparar, o Governo enfim apresentou o projeto de alteração no imposto de renda. O pacote tem medidas boas e novas. Mas as boas não são novas, e as novas não são boas.
Quando renunciou ao cargo de revisor gramatical da Constituição de 1988, o lendário gramático Celso Cunha disse que “clareza é a cortesia do legislador para com o seu povo”. O redator do PL apresentado pelo Governo não poderia ser mais descortês: o texto prima pela complexidade, complicando o que poderia ser simples.
E mesmo num primeiro exame, já é possível cravar que estamos, lamentavelmente, muito longe de uma efetiva reforma da tributação da renda que, por determinação da Emenda Constitucional da Reforma Tributária, deveria ter sido proposta pelo Executivo até março de 2024.
Embora não pareça haver dúvida acerca da razoabilidade da ampliação da faixa de isenção (atualmente limitada a pouco mais de R$ 2 mil mensais), sua elevação ao patamar de R$ 5 mil pode ser exagerada. Para se ter uma ideia, segundo dados da PNAD-Contínua do IBGE, um brasileiro com rendimento mensal de R$ 5 mil está entre os 10% mais ricos do País. Será razoável que esse topo da pirâmide seja isento?
E será razoável que o novo tributo seja cobrado de quem ganha R$ 1,2 milhão por ano pela mesma alíquota aplicável a quem recebe dividendos na casa das centenas de milhões? Por que não aplicar o elementar princípio da progressividade expressamente previsto na Constituição?
Também é um pouco difícil crer nos números. O custo dessa isenção foi estimado pela equipe econômica em R$ 25,8 bilhões no exercício 2026 – cifra que, meses atrás, havia sido calculada pela própria Fazenda em cerca de R$ 35 bilhões – sob o ceticismo de vozes autorizadas do mercado que vislumbravam um impacto da ordem de R$ 46 bilhões.
A (in)confiabilidade das estimativas governamentais é conhecida. Trazendo um exemplo concreto, o PLOA 2024 projetava arrecadação de R$ 54,7 bilhões com pagamentos de débitos decididos desfavoravelmente aos contribuintes no CARF pelo chamado voto de qualidade. Até julho passado, apenas R$ 83,3 milhões (0,22% da estimativa inicial) haviam sido arrecadados.
Mais uma vez, as bases de dados e metodologias que amparam as projeções oficiais são mantidas em segredo, impedindo o escrutínio pela sociedade.
Ceticismo à parte, o caminho escolhido pelo Governo para viabilizar fiscalmente o aumento da faixa de isenção foi a cobrança de IR na fonte sobre dividendos e a criação do chamado Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas Mínimo (IRPFM), ao qual poderão estar sujeitas as pessoas físicas que “auferem altas rendas” – assim consideradas aquelas com rendimentos anuais superiores a R$ 600 mil.
Ficarão a salvo do novo imposto IRPFM algumas poucas classes de rendimentos, como aqueles decorrentes de títulos e valores mobiliários beneficiados por isenção ou alíquota zero, a exemplo de CRIs, CRAs, LCIs, LCAs, FIIs, FIAGROs etc.
Um dos pontos que já promete gerar controvérsias é o cálculo da “alíquota efetiva de tributação dos lucros da pessoa jurídica”, fundamental para se aferir o limite do IRPFM sobre os dividendos recebidos, um procedimento de extrema complexidade material e operacional – especialmente para os contribuintes que receberem lucros de múltiplas empresas, algo bastante comum na vida daqueles que investem em Bolsa.
Ao indicar que a alíquota efetiva da PJ será calculada com base no “valor devido do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido”, a regra do PL sugere – em que pese a falta de clareza aparentemente proposital – que, no agregado, a compensação de prejuízos fiscais acumulados em exercícios anteriores poderia ser anulada pela imposição do IRPFM.
Trata-se de um erro grave. Mitigar os efeitos da compensação de prejuízos fiscais na redução da carga tributária imposta aos resultados gerados pela pessoa jurídica revela uma incompreensão de que exercícios financeiros são apenas abstrações definidas pela legislação para que se possa apurar o resultado tributável ao final de cada um deles. Capturar a verdadeira capacidade contributiva pressupõe analisar o “filme”, não apenas a “foto”.
Outra questão que merece atenção reside no fato de que as retenções sobre dividendos valerão já a partir de 1º de janeiro de 2026, ao passo que apenas a partir de maio de 2027 passarão a ser feitas as restituições devidas a quem tiver sofrido retenções superiores ao IRPFM calculado no ajuste anual.
Pior: a diferença do imposto recolhido a maior, a ser devolvida em alguma das dezenas de lotes de restituição do IR, somente estará sujeita à incidência de juros a partir de maio do ano subsequente às retenções – isso tudo enquanto a Selic se aproxima de 15%.
É escancarada a intenção de gerar arrecadação em ano eleitoral, postergando a devolução dos pagamentos a maior para o exercício seguinte.
Embora a palavra neutralidade tenha sido pronunciada repetidas vezes na solenidade de apresentação do PL, a própria exposição de motivos anexa ao projeto de lei revela que a arrecadação gerada pelo IRPFM e pela tributação dos dividendos remetidos ao exterior tende a superar, em cerca de R$ 10 bilhões ao ano, a renúncia estimada com a elevação da faixa de isenção do IRPF, pondo em xeque o discurso oficial.
Não custa lembrar que este Governo assumiu o compromisso de que a cobrança do imposto de renda sobre dividendos seria acompanhada da redução vigorosa nas alíquotas sobre o lucro das empresas, harmonizando a prática brasileira com o padrão OCDE. Tal compromisso foi reafirmado em março passado pelo próprio Ministro da Fazenda. Palavras ao vento.
Em vez do padrão internacional e da neutralidade, o Governo entrega apenas parte do compromisso – que representa aumento de arrecadação, deixando convenientemente de lado a necessária contrapartida da redução dos tributos das pessoas jurídicas, algo que a própria equipe econômica considerava indissociável para o arranjo. Para quem só tem martelo, todo problema é prego.
A busca por um sistema tributário mais equânime e justo é um anseio de toda a sociedade e ninguém há de discordar que ainda temos um longo caminho a percorrer, conjugando as alterações necessárias no sistema com a sustentabilidade das contas públicas.
Medidas mal concebidas ou com traços populistas podem causar estragos imensos à economia. Caberá ao Congresso a imensa incumbência de engajar a sociedade num diálogo franco e aberto, e apreciar a proposta de forma crítica, com a coragem necessária para promover profundos ajustes no texto apresentado.
Luiz Gustavo Bichara é sócio do Bichara Advogados.