17 mar 2025, seg

Os cancelados serão exaltados? – 27/02/2025 – Opinião

Uma das vantagens (poucas) de se estudar direito (não recomendo) é aprender duas coisas: a justiça tarda e a justiça falha. Considerando que a balança é descalibrada e falha mais do que deveria, é bom mesmo que tarde e se demore em pormenores hermenêuticos e questiúnculas processuais.

Foi assim e foi por isso, sob protestos dos justiceiros mais entusiasmados, que as sociedades organizaram o “devido processo legal” —para tentar restringir as práticas do linchamento e do desterro aos estudos de antropólogos e historiadores. Com certa má vontade, renunciamos (nem todos, nem sempre) ao inamistoso hábito de arrastar suspeitos e condenados à praça pública para servir de exemplo à comunidade.

Mas os “corsi” e “ricorsi” da história, como previa o filósofo italiano Giambattista Vico, desmentem qualquer otimismo: o progresso social não é linear ou inevitável. Errar é humano e persistir no erro é demasiado humano. De repente, como se tivéssemos esquecido tudo, como se nunca tivéssemos compreendido nada, inventamos um novo linchamento e uma nova praça pública, e abandonamos os ritos judiciais para adotar os ritos sacrificiais.

Não falo de ritos sacrificiais à toa. O crítico literário e antropólogo francês René Girard propôs uma explicação: em sociedades antigas, modernas e contemporâneas, o acúmulo insuportável de tensões tende a explodir em conflitos violentíssimos, que colocam em risco a própria sobrevivência coletiva. Para garantir alguma estabilidade e reestabelecer uma precária harmonia, os grupos escolhem a vítima a ser abatida, que absorverá a culpa, redimirá os culpados e servirá de bode expiatório à sanha persecutória dos deuses ou dos homens.

O que é o cancelamento senão uma espécie de linchamento público, seguido de banimento civil, que apazigua a voracidade moral dos canceladores? O cancelado não tem garantias, não se submete a processos, não pode se valer de uma defesa constituída nem exigir uma acusação formal: quaisquer indícios, especulações, fofocas, anedotas ou memes servem e sobram.

Não importa se o pecado foi cometido hoje, ontem ou será cometido amanhã. Tudo é sumário e sintético: a mais tênue suspeita é, ao mesmo tempo, acusação, julgamento e condenação. Não há segundas nem terceiras instâncias: apenas intenções. Não há advogados nem juízes: somente promotores. Tampouco um código penal que se possa consultar, porque o cancelamento é, como nas antiquíssimas tradições, um revide intempestivo e arbitrário.

Ninguém sabe o que ou quem merecerá a execração pública, porque não se trata de legislar, classificar e tipificar comportamentos ou crimes, mas de proteger valores, sentimentos ou condições. O cancelamento é reacionário e puritano. O cancelamento é uma estabanada defesa dos bons costumes de cada época.

Nas campanhas do calendário litúrgico das redes sociais, o que está em causa é a garantia de que os carrascos serão vistos como inocentes, porque são eles que apontam os dedos e fazem descer a guilhotina. Na teatralização cotidiana do eu, é mais importante representar o papel do mocinho e decorar as falas do herói que entender o sentido da própria peça.

O pêndulo do farisaísmo balança da esquerda à direita, da direita à esquerda, a depender dos sabores da história e, quando se trata de perseguir, conservadores e progressistas têm mais em comum do que gostariam de reconhecer. Mas a fiação moralista vai se emaranhando de tal maneira que muitos dos próprios canceladores já veem o pescoço em risco.

Acusadores e acusados da mesma turma aos poucos se devoram na autofagia ideológica, trocam as posições, misturam as falas, confundem os adereços e por fim descobrem, quase sinceramente espantados, que são feitos de carne, ossos, sangue e assombrações —e também são capazes de errar. O medo bastará para que repensem alguns conceitos e preconceitos? Possível, pouquíssimo provável, porque punir, convenhamos, é mesmo um vício inebriante.

TENDÊNCIAS / DEBATES

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