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Oscar: Documentário indicado segue os conflitos na Ucrânia – 27/02/2025 – Ilustrada

As mãos calejadas que criam delicadas criaturas de porcelana também montam, desmontam e disparam rifles com a mesma habilidade e precisão dos movimentos, em cenas do documentário “Porcelain War”, um dos favoritos ao Oscar no próximo domingo.

As mãos são do ucraniano Slava Leontyev, artista, ex-soldado e agora diretor indicado ao prêmio da Academia. Enquanto ele prepara a massa e modela as estatuetas, sua mulher Anya Stasenko faz as pinturas, intrincadas cenas inspiradas pela natureza de Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia, a 40 km da fronteira russa. E quando a guerra bateu à porta do casal, eles resolvem ficar e resistir.

“Nesta guerra genocida, nossa cultura é o alvo principal. Querem apagar nossa identidade”, disse Slava Leontyev à Folha em Los Angeles. “É tão fácil prejudicar a cultura, matar artistas e destruir nossos museus. Mas destruir completamente a cultura é impossível. É uma loucura sem sentido.”

A dupla compara a porcelana ao estado do seu país: frágil porém resiliente, podendo durar centenas a milhares de anos, como mostram escavações arqueológicas de cerâmicas de civilizações antigas.

“Sempre tivemos essa premissa desde que começamos a trabalhar com porcelana. Se fizermos muitas, talvez um dia, daqui a milhares de anos, alguém irá desenterrar nossa arte. Nos inspiramos muito na arte pré-colombiana das Américas.”

No filme, as pinturas de Anya, como flores de dente-de-leão, caracóis e passarinhos, viram animações que trazem a beleza e também a destruição de Kharkiv. As porcelanas têm formatos de animais, como coelhos e dragões, e chegaram a ter fila de espera para compra de seis meses e até um ano.

No momento, a criação de novas esculturas está em suspenso enquanto o casal divulga o filme e viaja pelos EUA. “Realmente estamos sem tempo, mas voltaremos um dia”, disse Slava. “Recebo muitas mensagens no Facebook de gente interessada em comprar, e tento sempre responder. Peço desculpas se não respondi ainda.”

Como instrutor de armas nas Forças Especiais Ucranianas, Slava treina civis para a guerra que completou três anos nesta semana. Ele decidiu entrar para o exército em 2014, após a anexação da Crimeia pela Rússia e o total descaso da comunidade internacional, já prevendo que as forças russas não parariam por ali.

Sua unidade, especializada em ataques de drones, é composta por civis que perderam suas rotinas e resolveram ajudar a defender o território. Há um fazendeiro, um vendedor de móveis, um designer gráfico, um construtor de casas e uma analista de sistemas. Nenhuma baixa foi registrada, e a unidade segue em batalha no momento defendendo Kharkiv.

“Eu estava servindo o Exército, não estava livre, mas consegui trabalhar no filme porque toda vez que pegava na câmera algum colega pegava meu rifle”, disse. “A câmera é uma arma com muito mais impacto que um rifle. A verdade é nossa arma. Para meus comandantes, foi uma espécie de descompressão incrível fazer algo cultural, algo bonito.”

“Ainda que seja estranho ter esses dois papéis, veio de maneira orgânica. Às vezes, com a guerra acontecendo lá fora, se você tiver chance, você pode fechar a porta e tentar criar arte. É algo crucial em tempos sombrios.”

Quando a guerra começou, Anya decidiu ficar ao lado de Slava e depois de alguns meses conseguiu voltar a pintar. Ela tem uma frase no filme que lembra a reação de Eunice Paiva, protagonista do brasileiro “Ainda Estou Aqui”, ao pedir para sua família sorrir numa foto de revista, após seu marido, o ex-deputado federal Rubens Paiva, ser levado pela ditadura.

“Durante os momentos mais revoltantes desta guerra, é extremamente importante apenas sorrir de vez em quando”, diz Anya. “É por isso que estou fazendo arte. Arte em nosso tempo, em nosso país.”

O filme é um dos favoritos ao Oscar no domingo após colecionar prêmios da indústria, como o do sindicato dos diretores e do Festival Sundance em 2024. É uma trajetória parecida com o vencedor do Oscar do ano passado, “20 Dias em Mariupol”, também sobre o conflito na Ucrânia, numa cidade a 450 km de Kharkiv.

Slava não conheceu pessoalmente o diretor, o jornalista ucraniano Mstyslav Chernov, que voltou a Sundance no mês passado para estrear seu segundo filme, “2000 Meters in Andriivka”, com cenas intensas de combate para recuperar a vila de Andriivka, perto de Bakhmut.

A direção de “Porcelain War” é dividida com o americano Brendan Bellomo, que instigou Slava a começar a filmar e que organizou o envio de câmeras para Kharkiv, além de aulas online para manuseá-las. Os dois se conheceram por conta de um projeto de animação com os desenhos de Anya antes da guerra estourar.

Slava também conta com ajuda do melhor amigo Andrey Stefanov, soldado e pintor de quadros a óleo, que assina a direção de fotografia e ganhou o prêmio do sindicato dos EUA. Andrey nunca tinha pego numa câmera antes, e a primeira cena do filme é a primeira cena que ele registrou, com Slava e Anya imersos nos campos de Kharkiv com suas porcelanas.

“Ele é incrível. E por causa do filme, voltou a pintar. Ele me disse que seus olhos mudaram por causa da experiência como diretor de fotografia. Estava pintando algo realmente novo e muito interessante”, disse Slava.

Andrey está no momento em Kharkiv, mas suas filhas gêmeas, que deixaram o país com a mãe e hoje moram em Luxemburgo, estão em Los Angeles para acompanhar a semana do Oscar.

Frodo é outra figura inseparável do casal, um cachorrinho simpático que veio com eles para divulgar o filme nos EUA e que estará no tapete vermelho do Oscar. “Frodo é muito corajoso e gentil, realmente ama estar com as pessoas.”

Após a premiação, o casal pretende voltar à Ucrânia para ajudar seus colegas e também a mãe de Slava que, aos 80 anos, é chefe do departamento de diagnóstico de um hospital da cidade. “Ela está doente e não quer ir embora para a Alemanha, onde estão meu irmão e sua neta. Ela está ocupada, seu trabalho é importante, e ela acredita que é seu dever ficar”, disse.

O diretor respira fundo quando escuta o nome do presidente Donald Trump, que tem desmantelado a política de ajuda dos EUA à Ucrânia. Ele evita falar em política e comenta que basta ouvir a propaganda russa para entender seus objetivos reais, muito além da ocupação da Ucrânia.

“Não é sobre nossa origem étnica ou língua nativa, é sobre a escolha entre democracia e totalitarismo”, disse. “E também não é sobre a Ucrânia apenas. A fronteira entre ideias totalitárias e democráticas pode ser encontrada em qualquer lugar, em todos os países.”

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