16 mar 2025, dom

Peça dá vida a padre Pinto, que rezava vestido como orixá – 30/01/2025 – Ilustrada

A ideia inicial era fazer um monólogo. O ator Ricardo Bittencourt procurou o conterrâneo baiano Luiz Marfuz, para dar forma ao espetáculo sobre padre Pinto, personagem polêmico que por 32 anos esteve à frente da Paróquia da Lapinha, em Salvador. Ao longo do processo, perceberam que um monólogo era pouco para história do clérigo.

Marfuz, que assina a dramaturgia e a direção da peça, adicionou um elenco de 13 atores, além de Ricardo Bittencourt, como o padre Pinto, e Sérgio Marone, um emissário do Vaticano, e uma banda com três músicos, para compor o que classifica como “quase um musical”.

O diretor promoveu um intercâmbio entre artistas de São Paulo —integrantes do Teatro Oficina— e da Bahia, para montar “Padre Pinto: A Narrativa (Re)Inventada”, que estreou sexta (24), no Sesc Pompeia, onde cumpre temporada até 23 de fevereiro.

O padre José de Souza Pinto era também bailarino e artista plástico. Durante o tempo na Paróquia da Lapinha, revitalizou a Festa de Reis e dedicou-se a diversas ações comunitárias e sociais. Ele tinha um espírito livre e, não raro, esbarrava nos dogmas e normas da Igreja.

Abraçou a cultura dos povos originários e das religiões de matriz africana, por exemplo. Ficou mais famoso em 2006, quando rezou missas vestido de indígena e de Oxum, orixá das águas doces. Incomodou. O evento ocupou a mídia, gerou polêmica e uma investigação que envolveu o Vaticano.

O fato de padre Pinto não esconder a homossexualidade e ter beijado na boca Caetano Veloso, também não ajudou. Ele acabou removido da Lapinha e recolhido a um retiro, onde viveu seus últimos 13 anos, até sua morte, em 2019.

Marfuz ancorou a narrativa em três atos: “Ascenção e Glória”, “Queda e Explosão” e “O Silêncio de Deus”. Também divide o espetáculo, com forte caráter onírico, em três planos: o material, que situa o padre e aqueles com quem convivia; o incorpóreo, onde estão os reis magos, santos, sombras e outros personagens, e o vão de passagem, que liga esses dois mundos onde transitam a figura do canjerê e as gárgulas.

Que ninguém espere uma biografia ou tom documental. A peça é mais uma celebração, unindo sagrado e profano, da figura exuberante do padre. “Não é uma biografia, não tínhamos como reconstituir. Não tivemos acesso aos documentos da Igreja, por exemplo”, explica Marfuz.

“Mas fizemos pesquisa de campo, ouvimos fiéis, gente ligada a ele. Padre Pinto é apresentado como um porta-voz contra a intolerância religiosa, racial e sexual. A peça mostra este ser transgressor, à frente de seu tempo, mas também suas contradições.”

Para Ricardo Bittencourt, foi justamente o cancelamento do padre que o motivou a contar a história, em um processo de construção iniciado em 2023. “Ele era uma figura extraordinária e sempre me comoveu este silenciamento.

Ele cita o clérigo, quando afirmou que “a Igreja não tem o tamanho dos meus sonhos”, a título de ilustração. “É por conta dessas pessoas que ousam sonhar demais que eu me mobilizei para apresentar esse personagem”, diz Bittencourt. “Padre Pinto é um farol neste momento em que o mundo vai para um lado intolerante e retrógrado.”

Ator há mais de duas décadas ligado ao Teatro Oficina, Bittencourt voltou há pouco a habitar o apartamento onde morava com José Celso Martinez Corrêa e Marcelo Drummond. O lugar foi reformado após o incêndio que vitimou o fundador do Oficina.

O antigo gabinete do amigo é agora seu quarto. “Tínhamos uma convivência muito intensa. Sinto uma saudade enorme.” A peça, idealizada por Bittencourt, Marfuz e Maurício Magalhães, é dedicada a Martinez Corrêa e à advogada Cris Olivieri.

Ator convidado, Sérgio Marone vive o emissário do Vaticano com a missão de decidir o futuro de padre Pinto. O ator não conhecia a história. “Fiquei fascinado. É uma história muito brasileira, com todo o sincretismo religioso. É a cara do Brasil”, acredita.

Ele conta que não foi fácil compor o personagem conservador. “Foi difícil trazer a teatralidade contida para este personagem inflexível.”

Ao longo de mais de duas horas, Padre Pinto é resgatado do silêncio e do esquecimento em um espetáculo fábula —em cena ele é uma criação dos reis magos— para, com a irreverência e a exuberância que marcaram a sua vida, pregar pela tolerância.

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