[RESUMO] No ambicioso “Fundações do Pensamento Político Brasileiro”, Christian Lynch refuta a tese de que não há um pensamento político próprio no Brasil e sustenta que a política brasileira não é uma cópia distorcida do pensamento europeu, mas uma adaptação particular, marcada por uma revolução monárquica sob as vestes de revolução oligárquica.
Existe um pensamento político brasileiro? A pergunta soa estranha, mas o eminente jurista e sociólogo gaúcho Raymundo Faoro escreveu um ensaio com esse título, respondendo à pergunta negativamente.
A sociedade brasileira, esmagada pelo estamento burocrático e comandada por um conservadorismo autoritário herdado de Portugal, não teria conseguido desenvolver um pensamento próprio. O liberalismo, que poderia ter emancipado essa sociedade, teria sido sempre fraco ou manipulado pelas classes dirigentes.
O monumental “Fundações do Pensamento Político Brasileiro: a Construção Intelectual do Estado no Brasil” (Topbooks), de Christian Lynch, tem por objetivo desmentir a tese de Faoro. Um dos pesquisadores mais destacados da atualidade sobre a história do pensamento político no Brasil, além de voz presente nas análises sobre a política brasileira contemporânea, Lynch se propõe a combater dois equívocos.
O primeiro, associado principalmente à obra de Faoro, mas não só, consiste em apreender o pensamento político brasileiro na chave do desvio em relação à teoria política dos países centrais, sobretudo europeus.
O segundo equívoco consiste em considerar que as teorias políticas dos países hegemônicos podem se aplicar, sem mais, à realidade de países periféricos como o Brasil, como se a condição periférica não alterasse o tipo de pensamento político que faz sentido por aqui.
Para combater esses dois equívocos, Lynch procede a um minucioso esforço de comparação entre o pensamento político brasileiro e aquele produzido na Grã-Bretanha e na França, os dois países econômica, política e culturalmente hegemônicos no contexto da Independência brasileira.
Para dar sentido a essa comparação, o autor investiga o complexo caminho histórico que o Estado democrático de Direito engendrou em cada um desses países. Tanto as semelhanças quanto as diferenças entre essas histórias nacionais são apontadas, para que as diferenças não sejam vistas como desvios, mas particularidades decorrentes das circunstâncias de cada país.
A base metodológica de Lynch reside nas várias versões de história política e intelectual que ganharam força a partir da crise intelectual do marxismo na década de 1970. Elas se caracterizam pela recusa de entender o debate intelectual e político de uma época como uma superestrutura derivada das relações econômicas, vendo-o antes como um processo ativo de construção da própria realidade política.
Mais especificamente, o trabalho de Lynch tem uma forte afinidade com a perspectiva teórica de autores franceses como Claude Lefort, François Furet, Pierre Rosanvallon e Marcel Gauchet, que distinguem o político da política e entendem o primeiro como uma chave para a apreensão do conjunto da sociedade.
Fogem, assim, da visão marxista da política como uma superestrutura produzida pela base econômica, mas também de boa parte da ciência política hegemônica, que estuda as instituições políticas isolando-as da sociedade.
Nessa perspectiva do político adotada por Lynch, o foco principal para entender o processo de modernização não recai na passagem do feudalismo ao capitalismo. São os regimes políticos, como monarquia, oligarquia e democracia, que se tornam chaves para compreender o conjunto da sociedade.
Nesse sentido, o autor avança uma tese interessante sobre o processo de construção da democracia. Uma primeira etapa desse processo consistiria na concentração do poder em torno de um monarca, criando um centro político capaz de uniformizar a sociedade e superar a “anarquia” feudal.
Lynch chama essa primeira etapa de construção do Estado de revolução monárquica. Uma vez consolidada, a revolução monárquica daria lugar a um momento monárquico, em que o rei exerce sem contestação sua autoridade arduamente construída.
A sequência do processo de construção da democracia ocorreria quando a centralização monárquica engendra uma sociedade civil incipiente que passa a reivindicar protagonismo, exigindo a limitação do poder político por uma Constituição e a subordinação do Estado aos ditames da opinião pública.
Como essa opinião pública seria aquela de uma elite ilustrada e proprietária, Lynch chama esse processo de revolução oligárquica, a qual produziria um momento oligárquico caracterizado por um regime representativo e constitucional com restrições à participação popular, sob a égide ideológica do liberalismo.
Apenas em um momento posterior, a luta pela ampliação do sufrágio e pela inclusão das classes populares constituiria uma verdadeira revolução democrática, seguida por um momento democrático de estabilidade do sufrágio universal com liberdades civis e políticas.
O ponto do autor é que, embora toda democracia precise passar por todas essas revoluções e momentos, o processo é diferente em cada país, seja pela maneira e velocidade como ocorrem essas etapas, seja pelo contexto histórico em que cada país se encontra em cada fase.
É negada, assim, a ideia de que haveria um caminho correto para a democracia, de modo que os países que não seguiram esse percurso ideal seriam desviantes. A comparação entre Grã-Bretanha e França é crucial para o argumento, pois as diferenças na maneira como cada um desses dois países construiu seu Estado de Direito revelam que, mesmo entre os países centrais da Europa ocidental, não havia um único caminho de modernização a ser seguido.
De acordo com Lynch, a Inglaterra realizou sua revolução monárquica no século 16, sob a dinastia dos Tudor. Porém, aquele país vive uma revolução oligárquica precoce, já no século 17, em um processo que envolve guerra civil, proclamação da República e restauração da monarquia, tendo por ponto culminante a Revolução Gloriosa de 1688.
De 1688 até as reformas eleitorais do século 19, a Inglaterra teria vivido seu longevo momento oligárquico, passando a ser encarada pelos demais países como o berço do liberalismo e o modelo perfeito de um Estado de Direito moderno.
Vivendo esse momento oligárquico antes da consagração dos princípios abstratos do Iluminismo, e sendo possível associá-lo ao percurso singular de um país que soube conciliar exemplarmente a tradição e a modernidade, a Grã-Bretanha teria consagrado um liberalismo “whig” moderado como o de David Hume e Edmund Burke, com seu ideal de progresso lento e seguro.
A França, por sua vez, teria levado mais longe sua revolução monárquica, fazendo do reino de Luís 14 um paradigma de monarquia absoluta. Esse modelo de soberania absoluta teria influenciado as principais ideologias relacionadas à revolução oligárquica francesa, ocorrida em meio ao apogeu das ideias iluministas.
O absolutismo ilustrado de Voltaire e Helvétius fazia da soberania monárquica um instrumento de construção da sociedade moderna, ao passo que o republicanismo radical de Rousseau e Mably transferia a soberania absoluta do rei para o povo.
Essas duas ideologias teriam se confrontado no início da Revolução Francesa, na Assembleia Nacional Constituinte de 1789. Enquanto o chamado partido monarquiano de Malouet, Mounier, Lally-Tollendal e Clermont-Tonnerre ainda via o rei como um agente modernizador em uma Constituição a ser reformada, patriotas como Sieyès, Le Chapelier e Talleyrand defendiam a transferência de todo o poder a uma Assembleia Legislativa que representaria a nação soberana.
Esse segundo grupo teria sido vencedor em 1789, empurrando a revolução oligárquica francesa para um absolutismo democrático que culminaria no Terror.
Apenas após a queda de Robespierre, a revolução oligárquica francesa teria retomado seu rumo em direção ao Estado de Direito e ao liberalismo. Benjamin Constant é interpretado por Lynch como um autor central para a aclimatação do liberalismo britânico à França, permitindo que ela passasse de sua revolução oligárquica a seu momento oligárquico.
Como a França não tinha a mesma história da Inglaterra e havia atravessado uma ruptura mais drástica com a ordem política anterior, Constant teria substituído o ideal britânico de progresso dentro da tradição por uma referência a princípios universais mais compatíveis com a cultura do Iluminismo. Assim, o próprio universalismo francês é considerado por Lynch como fruto de um particularismo histórico.
Para o autor, a particularidade dos países da América Ibérica (termo que ele usa preferencialmente a América Latina) consistiu no desafio de realizar suas revoluções monárquicas em um contexto histórico em que os países europeus que lhes serviam de referência já falavam a linguagem da revolução oligárquica.
Isto é, os países ibero-americanos precisavam centralizar o poder para criar e consolidar Estados ainda incipientes, como os reis da Inglaterra e da França haviam feito nos séculos 16 e 17, mas precisavam fazer isso em uma época em que as palavras de ordem eram liberdade, constitucionalismo e limitação do poder, não absolutismo, soberania e centralização.
Dentro dessa problemática ibero-americana de “uma revolução monárquica sob as vestes de revolução oligárquica”, a especificidade do Brasil decorreria, em um primeiro momento, da história de Portugal. O principal momento da revolução monárquica portuguesa foi guiado, segundo Lynch, pelo absolutismo ilustrado do marquês de Pombal na segunda metade do século 18.
A transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, teria engendrado um reformismo ilustrado luso-brasileiro, ligado ao projeto de construir um poderoso Estado imperial nos trópicos. Seria o início de uma revolução monárquica luso-brasileira, mas ela logo se choca com uma revolução oligárquica, antenada com o que se passava na Europa. Em 1820, uma revolução liberal exige a entrada de Portugal na era do constitucionalismo. Em 1821, a revolução chega ao Brasil.
Lynch explora de maneira muito interessante a apropriação de ideias oriundas da revolução oligárquica europeia em um contexto brasileiro que mal iniciara sua revolução monárquica, não possuindo ainda um Estado consolidado.
No contexto da Independência, o partido democrata ou patriota de frei Caneca e Cipriano Barata resgata a Constituição francesa de 1791, com seu modelo de república com rei (ou seja, de rei submisso à Assembleia Nacional), conciliando esse modelo com o federalismo norte-americano, de maneira a garantir a autonomia das províncias.
Porém, no contexto brasileiro, essas referências francesas e americanas não estariam a serviço da sociedade civil burguesa, ainda inexistente, mas sim da nobreza da terra em luta contra a burocracia monárquica luso-brasileira. Não se tratava ainda de revolução oligárquica, embora se recorresse à linguagem desta última.
Tratava-se, antes, de resistência à revolução monárquica recém-iniciada, à semelhança da Fronda na França do século 17. “Eram senhores de engenho que mobilizavam Locke, Rousseau e Sieyès para interromper a ‘revolução monárquica’ iniciada por dom João, que reduzira o espaço de autonomia das elites provinciais.”
Em contraste, os partidários do projeto imperial brasileiro, agora separado de Portugal, seriam chamados de coimbrãos e alinhariam seu discurso ao do constitucionalismo moderado britânico recepcionado pelos monarquianos franceses de 1789.
Na Constituição outorgada por dom Pedro 1º em 1824, eles recorrem ao poder neutro de Benjamin Constant, típica construção intelectual do momento oligárquico francês que visava, em seu contexto de origem, a neutralizar o poder do rei.
Todavia, segundo Lynch, o espírito do poder moderador brasileiro consistia antes em institucionalizar a razão de Estado da revolução monárquica sob a roupagem constitucional do momento oligárquico francês, atribuindo ao imperador um poder que lhe permitiria continuar o trabalho de construção do Estado.
Os dois projetos políticos, o do partido democrata e o dos coimbrãos, teriam continuado o confronto nas primeiras décadas do Império, dando origem aos partidos Liberal e Conservador. Os liberais prolongam a revolução oligárquica iniciada em 1821, quase chegando ao ponto de inviabilizar a construção do Estado brasileiro e fragmentar o território.
Contudo, a partir da segunda metade da década de 1830, a revolução monárquica teria sido retomada, promovendo uma centralização do poder que chegaria ao auge na década de 1850, quando o poder pessoal do imperador passa a ser aceito por todos os partidos e a promover reformas modernizantes que dão um primeiro contorno à embrionária sociedade civil brasileira. Seria, nas palavras de Lynch, nosso momento monárquico, com o Estado enfim consolidado.
A narrativa histórica de Lynch é extremamente instigante, articulando o pensamento político desenvolvido no Brasil colonial e imperial a uma interpretação do processo de construção do Estado democrático de Direito que envolve tanto os países centrais quanto os periféricos.
O leitor se dá conta de que o pensamento político brasileiro não é uma simples cópia ou deformação do europeu, mas uma articulação particular de elementos do pensamento ocidental que ganha sentido à luz da revolução monárquica sob as vestes de revolução oligárquica.
Entretanto, mesmo afastando as ideias de cópia ou deformação, é difícil não permanecer no leitor certa perplexidade perante a relação do pensamento político brasileiro com o europeu. É especialmente perturbadora a tese de Lynch segundo a qual as ideias mais radicais do republicanismo democrático francês eram usadas pela nobreza da terra do Brasil para resistir à construção do Estado e conservar seus privilégios coloniais.
O pensamento político brasileiro parece uma espécie de câmera escura do pensamento europeu, em que as posições aparecem de ponta-cabeça. O que na Europa era radical e democrático servia aqui para a nobreza agrária. Já os partidários da autoridade monárquica, que na Europa representariam o Antigo Regime, aqui representavam a construção do Estado nacional e a modernização.
É possível estudar o pensamento político brasileiro sem sentir nenhum desconforto?