O projeto de lei que isenta quem ganha até R$ 5.000 por mês e cria um imposto mínimo para os milionários deve sepultar as chances de uma reforma ampla da renda no Brasil no terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Os modelos em discussão da reforma da renda envolviam a volta da taxação da distribuição de dividendos para a pessoa física, acompanhada de uma redução na alíquota nominal dos tributos que incidem sobre o lucro das empresas, o IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica) e a CSLL (Contribuição sobre o Lucro Líquido), além da revisão de incentivos que beneficiam as camadas mais altas da população.
A não ser que o Congresso queira ampliar a reforma, a proposta não deve voltar à discussão porque a redução da tributação das empresas exigiria retomar a taxação dos dividendos (isentos desde 1995) para compensar a perda de arrecadação.
O imposto mínimo proposto pelo governo no projeto enviado na terça-feira (18) ao Congresso alcança, na prática, os dividendos recebidos por contribuintes com renda elevada, mas com um peso menor do que ocorreria se houvesse o retorno da tributação desse tipo de rendimento para todos os acionistas de empresas.
Essa é uma medida que sempre enfrentou forte resistência no Legislativo, embora tenha sido tema de campanha nas duas últimas eleições presidenciais, com promessas dos candidatos na direção da retomada da taxação.
Integrantes da equipe econômica ouvidos pela Folha deixaram claro que o projeto apresentado é, na visão do governo, o mais adequado para o Brasil e não há discussão sobre redução do IR das empresas.
Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a Câmara dos Deputados chegou a aprovar, com ampla maioria de votos, o projeto de lei enviado pelo então ministro da Economia, Paulo Guedes, que incluía a taxação dos dividendos e a redução dos tributos sobre as empresas.
Mas a proposta não avançou no Senado por falta de acordo em torno dos temas mais polêmicos, principalmente as isenções aprovadas pelos deputados que blindavam determinados grupos da cobrança de 15% sobre os dividendos.
Para aprovar na Câmara, foram aceitas tantas exceções que o projeto original terminou desfigurado e com risco de piorar a desigualdade do sistema tributário brasileiro.
Na nova gestão de Lula, a agenda original do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, era aprovar a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) da reforma dos tributos sobre o consumo e, numa segunda etapa, a reforma da renda, uma antiga bandeira do PT para reduzir a desigualdade de renda no Brasil. Haddad também tinha sinalizado com um projeto estrutural para desonerar a folha de salário das empresas.
A rota mudou quando ficou claro que Lula não aceitaria recuar da decisão de cumprir a promessa de campanha de isentar as pessoas que ganham até R$ 5.000 —uma medida que, mesmo não atingindo todos os contribuintes, exige uma compensação elevada para a perda de arrecadação com a desoneração.
O Ministério da Fazenda testou vários modelos que tributavam os dividendos, mas acabou optando por um desenho que olha a capacidade contributiva de cada cidadão e também carga a efetiva da empresa que distribui os dividendos aos seus acionistas.
A decisão levou em conta o fato de que a carga efetiva das empresas é mais baixa do que a alíquota nominal de 34%, o que faz com a tributação no Brasil seja inferior à média de 40% dos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
A carga efetiva é menor em razão das inúmeras exceções tributárias, incentivos e brechas na legislação que reduzem a base de cálculo e fazem com que as empresas paguem menos do que a alíquota nominal.
No anúncio dos detalhes do projeto, o secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Pinto, destacou que a regra de bolso da OCDE é tributar a pessoa jurídica em 20% a 25%, e a pessoa física, em mais 20%.
“O que a gente está fazendo aqui [com a proposta]? Um sistema que vai ficar com uma tributação ainda bastante inferior ao dos países da OCDE”, disse. “Se a pessoa jurídica já pagou 34%, não vai ser adicionado nenhum centavo de tributação nos dividendos.”
Segundo Pinto, não existe no momento discussão sobre redução da tributação das empresas. “Mesmo as empresas maiores, que pagam as maiores cargas, os estudos disponíveis indicam uma alíquota efetiva ao redor de 20%, e não perto de 34%”, disse o secretário de Haddad.
Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria, avalia que a proposta do governo foi “decepcionante” ao não mexer de forma profunda no Imposto de Renda.
Ele destaca que foram mantidas isenções que beneficiam pessoas de alta renda, como aquelas sobre alguns títulos de renda fixa (como LCA, do agronegócio, e LCI, do setor imobiliário) e sobre verbas indenizatórias recebidas por servidores públicos —muitas vezes desvirtuadas na forma de “penduricalhos” para turbinar salários acima do teto remuneratório.
“É uma pletora de benefícios, que têm objetivos justificáveis, tentar direcionar a poupança do setor privado que aplica no mercado financeiro para segmentos prioritários. Só que, com o tempo, isso vai reduzindo o volume tributável das pessoas mais ricas”, alertou.
“Mas o governo acabou sendo limitado por uma armadilha criada pelo próprio governo ao longo do tempo, que foi a criação de vários benefícios”, acrescentou. Segundo ele, o ideal seria passar uma régua e incluir esses benefícios na base de cálculo.
“Mas o que eu achei mais decepcionante é que a classe dos juízes e procuradores foi poupada, os penduricalhos continuam não sendo tributados”, disse. “O governo ficou com medo de isso ser um fator de rejeição do projeto no Congresso (sobre judiciário) e decidiu não enfrentar o poderoso lobby de juízes e procuradores.”
Nóbrega afirma ainda que o Executivo também deveria ter enfrentado a discussão das deduções de gastos com Saúde e Educação, que beneficiam grupos que têm condições de arcar com despesas privadas nessas áreas.
Em relação às empresas, o ex-ministro acredita que a fórmula encontrada pelo governo foi um “meio-termo” e, dado que a discussão do projeto deve ocorrer ao longo deste ano, não haverá espaço para discutir novas mudanças em 2026, ano eleitoral.
Para o tributarista Luiz Bichara, da Bichara Advogados, o governo abandonou de forma ostensiva a promessa feita no primeiro ano do mandato de que a tributação dos dividendos seria acompanhada da redução da tributação sobre as pessoas jurídicas, de modo a nivelar o Brasil com o resto do mundo. “Promessa essa que foi repetida em abril de 2024 pelo ministro Haddad”, disse.