O temor de muitos fãs de “Ruptura”, a sensacional série da Apple TV na qual os personagens implantam um chip para esquecer a vida no trabalho quando estão fora dele e vice-versa, é que as pistas deixadas ao longo de 19 episódios e a extensa iconografia incorporada à produção não passem de isca para a turma das teorias, sem razão narrativa, e o enredo se perca antes do fim.
Pois a segunda temporada terminou nesta sexta (21) e, afora algumas bizarrices, os pontos começaram a se conectar de forma harmônica. Este texto tratará deles, melhor lê-lo após assistir.
O desfecho desta semana turva a expectativa do início da temporada de que o “interno” e o “externo” (respectivamente, a personalidade de trabalho e a original, do resto da vida) de Mark, o protagonista, viviam em uma simbiose mais feliz do que a de seus colegas de Lumon, Helly, Irv e Dylan.
Talvez porque adotássemos o ponto de vista do Mark externo, que esperava a colaboração de seu “innie” para desmascarar a Lumon e salvar sua esposa, Gemma, a quem ele julgava morta e descobriu ser refém da corporação. Mas, se o Mark externo nos apresentou a “Ruptura”, é o interno que se consolida como herói.
Essa mudança de eixo torna o enredo mais interessante, pois propõe um conflito interno do personagem. São duas partes da mesma pessoa, uma a representar a razão e a outra, a emoção. Até então, a razão estava no mundo externo. Talvez não seja assim.
Por isso, o ponto alto do episódio é a conversa de Mark Scout (o externo) com Mark S. (o interno), feita por vídeos gravados em um chalé onde a ruptura funciona apenas do lado de dentro —para voltar a seu eu externo, ele precisa sair; o interno, entrar.
É uma cena simples do ponto de vista do roteiro e da produção, que geralmente prefere pirotecnia. Mas tem uma força imensa graças à atuação de Adam Scott, que vive as duas versões de Mark de uma forma tão tocante que dificulta escolher por qual torcer.
Essa dicotomia cresce ao longo do episódio até chegar ao momento em que Mark Scout salva Gemma (Dichen Lachman), prestes a ser descartada ou morta pela Lumon após sucessivas reconfigurações de personalidade, e no trajeto de fuga volta a ser Mark S., apaixonado pela colega Helly (Britt Lower), que lá fora nada mais é que a herdeira da Lumon.
A sequência em que ele se vê obrigado a escolher entre as duas é uma das preciosidades da TV recente, e a decisão tomada faz jus ao que o episódio traça. A narrativa dos duplos é quase um subgênero, e obras anteriores ensinam que o ego criado tende a prevalecer. A subversão de “Ruptura” estaria em fazer esse ser o ego mais nobre, ao contrário de, por exemplo, “O Retrato de Dorian Gray” ou “O Médico e o Monstro”.
O propósito do “misterioso e importante” trabalho de Mark na Lumon, afinal, é desvendado: ele está ali para reprogramar as diversas personalidades de sua mulher, que a cada encarnação esquece todos os traumas passados. Gemma é o protótipo mais bem acabado daquilo que a empresa quer criar, alguém cujas memórias possam ser dissipadas dentro de locais específicos.
Qual é o real intuito da Lumon com o desenvolvimento dessa tecnologia, contudo, é algo a ser explicado. É para livrar aqueles que podem pagar de sentir dor, seja física ou emocional? É para levar a mais-valia ao extremo e produzir exércitos de funcionários cuja única razão de ser é trabalhar? Não sabemos.
Na outra ponta, a parte mais frágil do episódio está em quando Milchick (Tramell Tillman), o pomposo gerente do andar da ruptura, promove uma festa com stand-up e fanfarra para celebrar a conclusão do projeto de Mark.
É em meio à música que Helly e Dylan (Zack Cherry) põem em curso mais uma rebelião dos internos, desta vez com o motivo oposto ao do final da primeira temporada: eles querem ficar na empresa, pois é apenas lá que podem existir. Fora da Lumon, Helly voltará a ser a arrogante Helena, e Dylan, um pai de família que se vê como inútil.
O que não fica claro é onde jaz a lealdade de Milchick. A temporada toda se amparou em defecções: de Cobel (Patricia Arquette, no papel de uma vida), de Mark, de Burt (Christopher Walken), talvez de Helena e, no final, de Lorne, a estranha pastora de cabras vivida pela imensa Gwendoline Christie. Milchick será o próximo? As humilhações dos últimos capítulos falarão mais alto?
E qual será a escolha de Helena, ou de Helly? A da segunda pensávamos saber; o fato de o chefe do clã, Jame Egan (Michael Siberry), se dizer desapontado com a filha e fascinado por sua “interna” abre dúvidas se ela não seria também um projeto como Gemma, ou se não seria ela a versão mais inteligente e por isso mais terrível.
Por fim, que voltem à cena Irv (John Turturro) e Burt, cujos personagens tiveram uma belíssima cena final antes do episódio derradeiro, porque Turturro é um dos intérpretes mais sublimes de sua geração e porque seu personagem é o mais próximo ao papel do espectador, juntando as peças.
O que começou como uma fábula sci-fi sobre nossa relação com o trabalho se converteu em uma provocação filosófica sobre propósitos, vontades e o que acontece quando tentamos sublimar aquilo que não aceitamos em nós ou nos outros.
A terceira temporada foi confirmada, está no forno, e tanto Dan Erickson (o roteirista e criador) quanto Ben Stiller (o diretor) prometem um intervalo menor do que os três anos entre as duas primeiras. É bom não demorar.