23 mar 2025, dom

Servidão é impossibilidade de imaginar mundo diferente – 22/03/2025 – Bernardo Carvalho

Num momento em que as artes reivindicam a palavra de ordem e a política do discurso autoconsciente como justificativa de sua existência, um ensaio de Jacques Rancière sobre Tchékhov (“Au Loin la Liberté”, ed. La Fabrique) toma um desvio corajoso ao relacionar a verdade da literatura com a liberdade no combate à servidão.

A servidão está nas mentes, na reprodução de ordens de sujeição que se substituem. “É isto a servidão: não a sujeição dos homens do povo aos representantes da ordem, mas sua submissão comum à repetição do mesmo; não a obrigação de obedecer, mas a impossibilidade de imaginar que as coisas possam ser diferentes do que elas são.”

É a impostura da revolução alimentada pelo ressentimento. Tchékhov “não crê que seja possível mudar a sociedade radicalmente pela repugnância à vida que levamos. A repugnância ainda é uma paixão servil que conduz com mais frequência ao ressentimento do que à revolta. Não são os homens do ressentimento que mudam a vida”.

Ocupar posições de poder antes ocupadas por outros, sem pôr o poder em dúvida, não garante o fim da servidão, mesmo sob aparência de ruptura. É o paradoxo da revolução. Para a mente subjugada, nada é mais insuportável, na ação como no pensamento, do que a oposição à ordem. “Essa é a primeira herança da servidão: o medo da liberdade, ou seja, a impossibilidade de pensar que possamos fazer nascer do tempo algo além da repetição idêntica da ordem das coisas.”

Tchékhov deixa entrever, na contraposição entre os diferentes modos de agir e de pensar de seus personagens, a possibilidade de outra vida. “Não é a revolução das posições sociais; é o desvio tomado em relação a uma existência sempre pronta a se submeter à escravidão”, escreve Rancière. É o que ele chama de “intensificação da vida”.

A lógica da servidão faz suas vítimas se resignarem, sem perceber, à reprodução da ordem como estado e destino do mundo, muitas vezes acreditando que lutam contra ela. A reprodução da servidão é a introjeção da renúncia à liberdade como ordem permanente.

É preciso que os meios correspondam aos fins. É a lição das artes, da ruptura das formas. Não se acaba com a servidão substituindo uma ordem de dominação por outra.

Tchékhov não era um revolucionário, mas um escritor. Nos contos como no teatro, ele revela o mundo pela palavra encarnada no corpo dos personagens, nos seus diferentes sentidos e entonações. O autor fala de algum lugar e tem suas próprias ideias, claro, mas aqui elas não contam. Não há tomada de posição nem lição de moral. Os personagens não são porta-vozes do autor. Não é a dialética que ele busca, a conclusão, a solução de uma nova ordem, mas a convivência dinâmica de opostos, diferenças e contradições. Afirmação e negação simultâneas.

A encruzilhada é o contrário da dialética. “É esse o privilégio do escritor: mostrar um futuro abstrato e já visível no corpo daquele que o professa, mostrar as ideias enquanto elas animam e esculpem os corpos; mas também, inversamente, desviar o olhar na direção do caos indecifrável que desfaz a evidência das ideias e desmente a presença desse futuro.”

O que conta não é o início nem o fim, mas o meio, o início sempre renovado como desvio, bifurcação, possibilidade permanente de escolha e ruptura. A liberdade só pode surgir, mesmo que à distância, se houver a possibilidade da dúvida, da incerteza e da esperança. É o contrário do mundo dos covardes e dos cínicos, mas também dos inimigos do debate, militantes da reprodução de uma nova ordem de certezas.

“O escritor apegado à verdade encontra a ação e os personagens no meio do caminho e os abandona no meio do caminho”, sem causa nem conclusão. “A grande mentira sobre o tempo é a que o identifica à necessidade.”

Nem progressismo edificante nem niilismo cínico. Romper o tempo da reprodução, contra os determinismos, é a política da literatura: não fazer ver o que já vemos, mas o que não queremos ver.


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *