Em 1766, a Suécia tornou-se o primeiro país a consagrar em lei um princípio revolucionário: o acesso à informação pública como direito inalienável. Dois séculos e meio depois, o Brasil enfrenta um dilema que aqueles legisladores pioneiros talvez não tenham previsto: como equilibrar a proteção de dados pessoais com a transparência de atos estatais?
A resposta, como demonstra o relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) julgado no último dia 12 de março, está na primazia da Lei de Acesso à Informação (LAI) sobre a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) quando se trata de interesse coletivo. O acórdão 506/2025 revelou que, dos 580.236 pedidos analisados entre 2019 e 2023, 30,8% foram indevidamente classificados como “restritos”.
Em muitos casos, utilizou-se o pretexto genérico da “proteção de dados” para negar informações públicas essenciais. Isso evidencia um desvirtuamento da finalidade da LGPD, que não pode ser usada para encobrir atos administrativos que devem ser acessíveis à sociedade. A relação entre privacidade e transparência exige um equilíbrio delicado. De um lado, a proteção de dados pessoais assegura direitos fundamentais do indivíduo. De outro, a publicidade dos atos governamentais é indispensável para evitar abusos.
Esse dilema já era perceptível no século 18. Jeremy Bentham defendia que a transparência funcionava como um “tribunal da opinião pública”, capaz de conter desvios pelo simples temor da exposição. No entanto, com a consolidação da privacidade como um direito autônomo, surgiram desafios para essa equação.
O Caso Lebach, julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão, ilustra essa tensão. O tribunal reconheceu que a divulgação da identidade de um ex-criminoso, anos após o cumprimento de sua pena, violava sua dignidade e privacidade, pois a informação já não atendia a um interesse público relevante.
Essa decisão influenciou o desenvolvimento do direito ao esquecimento, que protege indivíduos contra a exposição indefinida de informações prejudiciais. Contudo, esse raciocínio não pode ser usado para justificar a negativa de acesso a informações públicas.
A experiência internacional mostra que privacidade e transparência podem coexistir. Na Alemanha, onde leis de proteção de dados existem desde os anos 1970, contratos públicos e salários de servidores são divulgados integralmente. Esses dados são considerados de interesse coletivo.
No Brasil, o Estado se fecha em fortalezas, dificultando o escrutínio público. O TCU mostrou que 67,6% dos pedidos de informação são atendidos na primeira instância. Quando negados, a taxa de sucesso dos recursos cai para apenas 13,9%. A Constituição de 1988 não deixa dúvidas: a publicidade é um princípio estruturante da administração pública.
Um exemplo universal da importância da transparência para a democracia pode ser encontrado no Freedom of Information Act (Foia) dos Estados Unidos. Desde sua criação, em 1966, essa legislação tem sido utilizada para expor casos de corrupção, abuso de poder e ineficiência administrativa. O Foia permitiu a divulgação de documentos essenciais para investigações jornalísticas, como os Pentagon Papers, que revelaram informações sigilosas sobre a Guerra do Vietnã.
O Tribunal de Contas da União não tem se omitido e permanecerá vigilante sobre a observância da LAI, garantindo que a proteção de dados não seja instrumentalizada para restringir indevidamente o acesso à informação.
Rousseau afirmava, em “O Contrato Social”, que a vontade geral só se manifesta em um ambiente de clareza. Essa ideia foi bem sintetizada pelo juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Louis Brandeis, um dos mais influentes defensores da transparência e do direito à informação. Brandeis foi pioneiro na formulação do direito à privacidade.
Sua célebre frase, “a luz do sol é o melhor desinfetante”, reflete uma verdade inegável: governos opacos minam a confiança da sociedade e abrem espaço para abusos. Permitir que a LGPD sirva de escudo para a opacidade não fere apenas a LAI, mas o próprio pacto democrático. Afinal, sem transparência, não há democracia.
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